quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sobre nós 2 e o resto do mundo

(Conto inspirado na música homônima, de Frejat, Maurício Barros e Mauro Sta. Cecília)

         Marcelo olha para o relógio e tem um pequeno sobressalto com o toque do celular quase ao mesmo tempo. Quem seria justo agora? Pelo bina viu que era Fred. Agora não. Deixou cair na secretária eletrônica. Desviou-se da cama em seu quarto apertado e ligou o computador. Em seguida tocou o celular mais uma vez. Era Fred de novo. Marcelo, com impaciência, atendeu e andou até a mínima sala do conjugado dividido em dois ambientes. “Fala, cara.”

         – Deixei um recado pra você... Temos uma noitada pela frente!

         – Hoje não vai dar.

– Que foi, está me dispensando?

– Não, não é isso...

– Rapaz, hoje é terça-feira! Dia perfeito pra cair na night.

– Vou ter uma reunião importantíssima amanhã.

– Que papo de reunião o quê! Pra cima de mim? Deve estar aprontando alguma coisa.

– Que nada. Estou devagar quase parando.

– Já vi tudo. Teve uma recaída da Bruna.

– Não. Ela nunca mais.

– Vai me dizer que é aquela mulher da internet?

         – É.. quer dizer não. Ainda não. É que está quase na hora...

         – Não acredito que você está perdendo seu tempo com...

– Por favor, Fred, sermão não.

         – Isso não existe, rapaz! Essa mulher deve ser de mentira.

– Ok. Eu já estou bem crescido.

– Então vamos, seu Mané. Um pit-stop antes na casa do Paulão. A namorada dele vai levar umas amigas. Depois a gente sai pra algum lugar.

– Fica pra próxima, Fred. Hoje não estou a fim.

– Então, tá, Marcelo...  Tá muito baixo astral, hein! Fica curtindo a sua solidão e depois eu te falo da gata maravilhosa que eu vou pegar.

Janice está sentada no sofá com a tevê ligada e o laptop em seu colo. Olha para o relógio e em seguida nota o recebimento de uma mensagem no Facebook. É sua amiga Ana. Olha de novo para o relógio de pulso e parece ansiosa, mas não resiste à curiosidade de ver a mensagem. “Você vai ao jantar da Flávia?” Ela solta um muxoxo e faz uma cara de quem havia se esquecido completamente. Olha mais uma vez o relógio e resolve escrever logo uma resposta. “Ana, não sei se vou poder ir ao jantar hoje. O Pedro ainda não chegou do trabalho e ele anda muito chato.”

Quase que instantaneamente, Janice recebe um retorno: “E o tal cara do MSN?”

“Vou falar com ele agora.”

“Você não acha que essa conversa já foi longe demais?”

“Talvez. Acho que vou terminar tudo hoje.”

“Ih... Sai logo dessa! Essa história de romance no computador é roubada. Você já não está cansada de ouvir coisas escabrosas que aconteceram a partir de um papinho inocente?”

“Lógico que sim. Mas está rolando algo... Olha tenho que ir. Amiga, por favor, só você sabe disso!” De repente ela olha em volta da sala como se alguém a espiasse, respira fundo, se ajeita no sofá e entra no MSN.

Diante da tela do computador, Marcelo se concentra e escreve: “Você está aí?” Espera alguns segundos e, enquanto isso, olha pela janela e quando volta o olhar para o interior do ambiente se depara com Janice na porta de seu quarto.

– Posso entrar? – pergunta Janice com um sorriso matreiro.

– Oi... – num impulso, ele se levanta da frente do computador. Pensa em beijá-la, mas desiste e procura ser hospitaleiro, um pouco desconcertado por não haver outra opção: – Senta aqui – e dá duas batidinhas com a ponta dos dedos na colcha da cama, que não era trocada havia quase uma semana e meia, por conta da falta da faxineira na véspera.

– Não foi pra isso que eu vim aqui... – diz Janice já se sentando na cama.

– Desculpe. Eu não queria...

– Sabe que você é igualzinho à foto? Aliás parece até melhor pessoalmente.

– Não era pra ser assim, igual à foto? – diz ele, meio nervoso e ignorando o elogio, voltando para seu lugar à mesa do computador.

– Claro que não. As pessoas se escondem na internet. Eu mesma...

– Mas você é casada. Aí é diferente. Ou não é casada?

– Sou. Eu não menti pra você.

– De qualquer forma, eu adorei sua foto com o desenho da lagartixa na pedra.

– Hahaha... aquela também sou eu.

– Você é tão linda.

– Você também não é de se jogar fora, Marcelo. É esse seu nome mesmo?

– Sim. Eu também não menti pra você. Mas posso supor que seu nome não seja “lagartixanapedra@...”

– Não... é Janice.

– Bonito nome. Combina com você.

– Mas pode continuar a me chamar de Tixa. Eu gostei.

– Tá bom. Eu estou adorando te conhecer – arrisca Marcelo.

– Eu também. A gente até que se diverte.

– Mas confesso que tem uma coisa que ainda não entendi...

– Deixa eu adivinhar. Por que eu entrei num site de relacionamento? – se antecipa ela.

– Exato!

– Até parece que você nunca foi casado! Ou não foi? A Bruna existe mesmo?...

– Sim, infelizmente.

– E você? Livre, morando sozinho, bem apresentável... Por que entrou num site desses? Não devia precisar!

– Mas é que sou tímido... Vem cá, isso não é justamente pra quem está solteiro?!

– Ih... – interrompe Janice. – Sujou. Nos falamos depois – e vai se levantando da cama de Marcelo.

– Espera...

– Ah, me diz uma coisa: você não contou pra ninguém, não é?

– Não, eu...

– Então, tá – interrompe mais uma vez Janice, dando-lhe um beijo de leve na boca. – Deixa o computador ligado, Marcelo. A gente se fala mais tarde.

Subitamente Janice some. Marcelo vai até a cama e apalpa o vazio como se não acreditasse. Acaba se deitando um pouco e adormece. Quando acorda, quase duas horas depois, lembra-se do combinado e pula em cima do computador. “Você ainda está aí?”, escreve ele. Janice está recostada em sua cama, com o laptop no colo, e o marido, Pedro, ao seu lado, dorme profundamente. “Estou, seu furão!”, responde ela. Marcelo então aparece na cama do casal, entre os dois.

– Eu dormi um pouquinho... – diz ele, olhando com estranhamento em volta.

– Shh... Fala baixo! Se o Pedro acordar, ele me mata! E estou muito nova pra morrer...

– Do jeito que ele está roncando... – sussurra Marcelo, tirando o braço do outro de cima de sua perna – Você está tão sensual...

– De roupa de dormir? Assim a gente vai cortar todo o romantismo!

– Isso não é problema. Pra mim você está nua... O problema é ele.

– A gente não pode continuar a se encontrar desse jeito... – diz ela, deixando o laptop na mesinha de cabeceira.

– Também acho. Me dá um beijo?

– Toma, vai – Janice dá um selinho rápido, parecido com o outro da casa de Marcelo.

– Assim não... – ele tenta abraçá-la.

– Para com isso... agora não!

Nesse momento, Pedro tosse e se mexe na cama.

– Vamos nos encontrar amanhã, mas de verdade – diz Marcelo baixinho.

– Amanhã?

– É... Vamos nos encontrar na rua, num lugar público.

– Mas tem que ser em segredo.

– Deixa eu terminar. Um encontro sem aproximação... Depois a gente vai, separado, para um lugar tranquilo, só nós dois... e sem internet.

– Até que não é má ideia. Mas você não pode ir com essa camisa velha, por favor.

– Eu estava agora em casa, esqueceu?

De repente, o marido abre os olhos. Janice pega o laptop de novo. Marcelo fica petrificado.

– Você disse alguma coisa? – pergunta Pedro, sem notar a presença do outro.

– Não... Dorme – diz Janice fingindo digitar algo. – Você precisa descansar. Daqui a pouco eu vou também.

– Tenho uma reunião importantíssima amanhã. – Pedro vira para o lado e dorme de novo.

– Como é que ele não me viu?! – fica sem entender Marcelo.

– Acho que o Pedro não consegue enxergar mais coisa nenhuma!

– Você tem que ir! Eu vou. Você topa?

– Então você vai. Se eu aparecer, é porque topei.

– Ótimo. Amanhã de manhã te mando uma mensagem com o endereço... Tixa... – Marcelo dá em Janice um beijo longo, espaçoso, empurrando o marido mais para a beirada da cama. No início ela resiste, mas retribui um pouco constrangida. Depois fica emburrada (“de tímido não tem nada...”) e fecha o laptop. Marcelo desaparece. Janice desliga a luz do abajur e dorme.

No dia seguinte, Marcelo se veste com esmero, bota perfume e chega cedo ao local combinado. Anda em ziguezague pela calçada, apreensivo. Procura por Janice por todo o quarteirão e não a encontra. Faz o mesmo trajeto duas vezes, caminhando devagar e reparando em cada rosto que passa. Vem à sua mente que talvez tenha forçado a barra no final. Quem é tímido não deve fazer certas coisas. Desanimado, pensa em desistir. Até que ela surge, sorrindo, do outro lado da rua.


sábado, 24 de setembro de 2011

2 poemas de Gullar

INSETO

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo
que uma hidrelérica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida


NEM AÍ...

Indiferente
           ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
         à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
         o gatinho
         se espreguiça
         e deita-se e
         adormece
                 em cima do poema


(Ferreira Gullar)

sábado, 10 de setembro de 2011

Ad infinitum

“A frase para sempre é uma das baixas de nossa época.”
(Luís Fernando Verissimo)


Olhando para dentro do domingo
não vejo a praia, a parede
nem poeira onde possa me agarrar.
Estou sozinho no meio do azul
sem nenhum cobertor ou trago.
As lembranças afloram úmidas:
situações que supunha
hoje pouco
evidenciam o nosso impasse.
Entro no cinema para ver fantasmas.
Leio poemas de uma amiga stradivarius
e mastigo mágoas até amanhecer.
Não devia, mas
sinto como um navio
a tua falta.