sexta-feira, 27 de maio de 2011

Panaceia

para durarmos, digamos, cem anos
eu não sei muito bem o que fazer,
mas para manter duríssimo o cano
basta continuares a me enlouquecer.


nada do que provei se compara,
ou pelo menos chega perto,
ao teu ávido manjar infindo -
só ele me extingue por completo.


já não posso te amar com geléia
sem ter na língua e na tez o instinto
de que teus pés, teus seios e teu sexo
trazem à tona o mais puro absinto.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A mosca de Pessoa

(A SOMBRA DO FAQUIR 16)




Abriguei-me da chuva forte que caía no meio da tarde no bar Casual Retrô, na rua do Rosário. O tempo esfriou muito e ouço espirros e tosses por todos os lugares. Tento me desviar deles. Mas como sou hipocondríaco e amigo de Murphy, eles me procuram obstinadamente, seja no metrô, na sala de aula (estou fazendo um curso na UERJ com o apresentador e editor do Sportv Marcelo Barreto e com o sociólogo Ronaldo Helal) ou na bela exposição de Laurie Anderson no CCBB. Menos aqui, ainda bem, no boteco do conhecido chef Santos.

Como ainda não teve início o movimento vespertino do bar, a televisão mostra o jogo do aguado e milionário campeonato inglês apenas para um ou outro garçom. Há nesse momento uma única mesa ocupada, com duas pessoas, no fundo do salão. Peço uma taça de vinho e uma mineral sem gás. Percebo que os dois sujeitos, ostensivamente diferentes, enquanto conversam, bebem da garrafa de cachaça mineira Meia Lua Prata e fumam charuto. Como o bar estava vazio e ninguém disse nada preferi não protestar e sim esticar os ouvidos.

– Quem diria, Fernando, você com essa cara de caretão é muito mais louco do que eu!

– Que nada, meu caro artista! Está aí um quesito em que dificilmente algum outro ser humano irá suplantá-lo. Isto sem falarmos do seu talento musical, naturalmente, que também é fora do comum.

– Porra, você não, véio!... Já chega eu ter que ouvir, do além, o tempo todo... Toca Raul... Toca Raul... Não vem puxar meu saco! Aliás, com qual de vocês estou falando?

– Ora, com qual... Você não está me vendo?

– Sim, estou, mas e daí?... Você é tantos. E não vai me dizer que estou me referindo à sua metamorfose ambulante por causa desta bendita cachaça.

– Gostei da expressão... Aceita mais um gole?

– Claro, meu poeta. Mas não foge do assunto.

– Todos, exceto nunca terem levado porrada na vida, são múltiplos por definição, como eu.

– Ah, já sei! Nem mesmo você sabe qual é a pessoa da vez... ou o Pessoa... de agora. Pode me chamar de louco ou estúpido, mas dessa vez alguém te pegou.

– Quem me pegou, ó pá?

– Eu, Raulzito, seu criado.

– Tu me pegaste, como assim? Preferia que fosse Ofélia, minha antiga namorada.

– Não foge do assunto!

– De jeito nenhum. Só quem puder obter a estupidez ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz: perder, chorar, sofrer vez após vez em busca da beleza!

– Ih, rapaz, com todo o respeito... Acho que a tal da Ofélia despirocou sua cabeça. Seus olhos ficaram até vermelhos e mareados. Se você não tem colírio nem óculos escuros, bebe mais uma dose.

– Talvez seja melhor mesmo. Você é uma grande figura.

– Você acha? Ninguém tem o direito de me julgar a não ser eu mesmo. Eu me pertenço e de mim faço o que bem entender.

– Bravo! Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para pessoas como nós, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

– É isso! Grande pessoa és tu... Nada é mais coerente se virar de trás pra frente, tanto fez como tanto faz... Homem, quero mais um brinde, por favor: viva a sociedade alternativa!

– E vivamos nós, já que o próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Quando tentava entender a última frase, eis que chega meu parceiro Roberto Frejat, com quem havia combinado de almoçar e ver a exposição sobre o Poeta dos heterônimos. Comemos o ótimo Bacalhau Retrô, com batatas portuguesas e molho de mostarda, conhaque e vinho do Porto. De súbito, os dois sujeitos ostensivamente diferentes que bebiam aguardente e fumavam charutos somem do fundo do salão. Aperto os olhos e vejo duas moscas sobrevoarem a travessa vazia de bacalhau. Saciados e sem ter pesado muito no estômago, fomos flutuando com a insistente chuva para a exposição ali perto. Deslumbrante seria até econômico para definir o material que é posto à exibição pelo Centro Cultural dos Correios para nós, simples mortais privilegiados. Eu e meu querido amigo nos emocionamos e aprendemos mais um pouco sobre a biografia do poeta lusitano mais brasileiro que existe, que arriscou muitas empreitadas estapafúrdias e que transforma definitivamente quem o lê.

Quase ao final da exposição, chama a nossa atenção o seguinte texto de Fernando Pessoa, em destaque numa das paredes da sala escura: “Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia.” Frejat sorri e comenta que é totalmente metamorfose ambulante. Logo pego um pedaço de papel qualquer para anotar o trecho e, enquanto rabisco no breu, disparo a recitar mentalmente o mantra: Toca Raul... Toca Raul... Ao sair do prédio, sinto um zumbido alarmante, tão egoísta como um beijo, rasgo imediatamente o papel e o jogo no lixo; em seguida despeço-me do parceiro e sigo meu caminho, mas com o mantra (e o zumbido) ainda na cabeça.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Lexotan

no auge do meu sofrimento, o telefone

toca e uma voz de criança pergunta:

aí é do baú da felicidade?

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O lado mais sombrio do Leblon

DE BAR EM BAR (86) – Bar do Ferreira


Esta semana chega ao fim mais uma edição do Comida di Buteco. É a terceira vez que bato ponto e embarco no prazer de conhecer novos botequins, e revisitar outros velhos conhecidos, via a mineirada boa de copo que comanda esse evento (e que entende do traçado), mas dessa vez procurei ir aos bares mais perto de meu lar, pois ainda me recupero da infantil estripulia de uma fratura por estresse. Fui, entre outros, ao Bar do Ferreira, ali na Dias Ferreira esquina com João Lira, no Leblon. É um bar que há tempos eu queria conhecer. Num bairro onde já morei em vários endereços e situações.

O Bar do Ferreira era um pé-sujo frequentado pela rapaziada. Geralmente você via por lá, em pé na área externa em frente ao bar, algumas das maiores gatas e os maiores malandros e vagabundos do Leblon. Tinha aquele tipo inesquecível de garota, a que possui uma beleza selvagem e é a bad girl da escola. Sempre o observei com bons olhos. Tinha o charme e a sobriedade de se localizar numa rua interna do bairro, com acesso menos óbvio aos forasteiros. Longe do brilho fácil e carismático dos bons (ótimos) bares dos locais mais badalados. (Como Jobi, Bracarense, Clipper, o atual Chico & Alaíde...) Até que, de repente, passou por uma reforma e o Bar do Ferreira virou um pé-limpo. É o que fui conferir.

Na verdade a reforma nem é tão recente assim (2009). Mas isso não importa. Cheguei num sábado à tarde e, de longe, já vi as bandeirolas do festival. Havia um movimento moderado, mas a parte da janela, que dá o intercâmbio do interior com a rua, com cadeiras de ambos os lados, e também as poucas cadeiras na calçada estavam ocupadas. Sentei-me com Sylvia na parte interna e fomos direto ao ponto. Pedimos logo o petisco que era apregoado no cartazinho sobre a mesa. Hot roll de carne-seca. A fome era grande. Para acompanhar, dois chopes.

Esqueci de dizer que o salão a esta altura estava tranquilo. Pai e filha almoçando, um coroa tomando uísque, o garotão vendo o futebol. O espaço não é muito grande, mas é simpático. Um bom balcão, bebidas de qualidade nas prateleiras em volta das paredes. E um razoável trunfo – chope da Brahma e cerveja grande de garrafa no cardápio – para um boteco agradar gregos e troianos (como não sou nem um nem outro, comecei no chope e depois passei para a cerveja). Mas e o petisco? Veio sem graça. A apresentação era ok, a idéia de inspiração na culinária japonesa interessante (desde que você não seja um purista radical, o que não é o meu caso – sou partidário da arte acima de tudo), só que não foi o suficiente. O enroladinho de couve com aipim, recheado de carne-seca realmente não decolou. Mas isso não foi o fim do mundo.

Uma nova olhada no cardápio, e cravamos o bolinho de feijoada, uma criação do Aconchego Carioca, que ganhou fama e também o seu lugar em outros bares e versões. Fiquei curioso. Aliás o cardápio tem um elenco de opções que desperta curiosidade pela mistura de pé-sujo com pé-limpo. Aqui tem Perdidinho do Ferreira (camarão, carne-seca), espetinhos de queijo, frango, misto e filé mignon, coxinha, croquete de carne assada, risole, pasteis de bobó de camarão e de pizza, sanduíches de pernil, linguiça acebolada, salaminho e lombinho, e os pratos na chapa: camarão à paulista, picanha fatiada, calabresa acebolada, carne-seca com aipim e farofa. O bolinho de feijoada veio correto e com o bom senso de não ser uma cópia do original, mas uma variação.

O melhor mesmo veio para o final. A casa oferece de caldos o seguinte: batata baroa com gorgonzola, feijão e bobozinho. Pedimos o bobozinho. Este sim veio saboroso e consistente. Um bom motivo para descer uma Bohemia de saideira e solicitar ao discreto e eficiente garçom la contita. A esta altura está se processando a troca de turnos, o pessoal que veio tomar uma depois da praia já se foi, o velhinho solitário que espia tudo com olhos de menino travesso também e agora são casais e grupos de mulheres que se aboletam no local. Noto que, em geral, não são necessariamente da área. O público, portanto, do Bar do Ferreira cresceu. Mas, com todo o respeito, a pergunta que não quer calar é: e as lindas gatas da pá-virada, as que gostam do lado mais sombrio do Leblon, continuam frequentando? Saúde e até a próxima.

Bar do Ferreira – Rua João Lira 148, Leblon (2540-7014)