terça-feira, 31 de agosto de 2010

Três novas razões para uma vida plena

A SOMBRA DO FAQUIR – 3


Antigamente se dizia que para que uma vida valesse a pena ser vivida o indivíduo deveria, antes de expirar sua passagem pelo planeta, fazer três coisas: 1- plantar uma árvore; 2- ter um filho; 3- escrever um livro. Ações que justificariam uma existência. Com o império do descartável, com a revolução da tecnologia da informação e com a alucinada velocidade subjetiva do tempo, tais requisitos não são mais primordiais. Ficaram defasados.

Hoje não é mais necessário plantar uma árvore. A consciência ecológica e o sentido de perenidade (que não dura mais uma vida inteira mas até o próximo verão) podem ser aplacados com o apoio virtual a campanhas como salvem as baleias e não ao desmatamento da Amazônia, e ainda com pequenos grandes gestos como a utilização de sacolas retornáveis no lugar das sacolas de plástico nas compras do supermercado. Tudo em nome do futuro.

Hoje não é mais necessário ter um filho para se dar continuidade a uma cadeia hereditária. Como a família não possui mais um formato único, padrão, é possível ser o pai (na prática) do filho (de outro casamento) da sua atual mulher. E vice-versa. Com muito mais tempo de convivência e de afeto do que os progenitores reais em boa parte dos casos.

Hoje também não é mais necessário escrever um livro. Num momento em que cada vez mais se questionam mídias como o livro impresso e o CD (este praticamente moribundo), o invisível espaço virtual para troca e aquisição de conhecimento e fruição estética é o caminho ladeira abaixo da humanidade atordoada e dispersa em mil e um estímulos que nos liberam da experiência tátil e do contato físico.

Portanto, diria que, atualizando o ditado popular, três possíveis razões contemporâneas para validar uma existência neste início de século 21 seriam: 1- participar de um reality show (como se sabe, hoje esse tipo de programa está presente em praticamente todos os canais de televisão e sobre os mais variados assuntos: anônimos que querem virar celebridades, bandas de rock, chefs de cozinha, casais gordinhos, quase famosos, cães problemáticos e por aí vai); 2- casar no mínimo três vezes (o que gera uma infinidade de subfamílias que se interpenetram e garantem amor e ódio para sempre); 3- escrever um blog (qualquer um pode ser escritor ou jornalista e garantir seu lugar na posteridade virtual).

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Segundo tais requisitos, a minha vida estaria ainda a 2/3 do ponto de poder ser considerada plena – atinjo tão-somente o último item e mesmo assim a custa de muita resistência e indecisão quanto à minha real aptidão para essa modalidade de diário pessoal e público.

Num exercício de imaginar o que significa para mim uma vida bem vivida diria que é preciso: 1- antes de mais nada, fazer o que se gosta; 2- ter ao menos um grande amor, um grande amigo ou um grande parente; 3- ter sempre dinheiro para comprar livros, discos e, digamos, algum cachorro engarrafado.

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Esta eu ouvi numa das últimas edições do extraordinário programa Coisas pelas quais vale a pena viver, da atriz Priscilla Rozembaum e do ator, dramaturgo e cineasta Domingos de Oliveira, que passa no Canal Brasil. A respeito do último dia da temporada da peça Moby Dick no Teatro Poeira, no Rio, mestre Domingos mandou: “Sabe qual é a forma mais interessante de sabedoria? A loucura controlada.” É isso aí.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Descerebrai-vos

“Uma vez admitido que a vida possa guiar-se pela razão, aniquila-se a possibilidade da vida.”
(Leon Tolstoi)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Olhos (e boca) de Facebook, ouvidos da Igreja Universal

A SOMBRA DO FAQUIR - 2

A propaganda geralmente consolida e traduz tendências existentes na sociedade. Não costuma criar novas bossas, mas, ao contrário, capta o que está rolando – às vezes, dependendo da sensibilidade do publicitário, até mesmo apresenta como novidade o que já é pretérito.

Dois comerciais recentes me chamaram muito a atenção. No primeiro, uma família se prepara para sair de férias. Cheia de bugigangas, entra no carro, finge que vai zarpar e volta para a garagem. Na cena seguinte, vemos a família toda em frente à tevê, curtindo a mil. Férias ideais: na segurança e no conforto do lar, controle remoto na mão e dezenas de canais do mundo inteiro. O fim da picada.

No outro, um comercial de telefonia, o pai e o filho adolescente conversam, este, como aborrescente típico, desqualifica o esforçado provedor, que exulta ao conseguir checar seus e-mails pelo celular, transformando-o, um homem de seus 40 e poucos anos, numa peça de museu ao lhe informar que e-mail já era, o negócio agora são as redes sociais. (No final o pai dá o troco, quando o filho mostra a foto da namorada no celular: “namorar... que coisa mais careta!” – mas isso não importa).

Conjugados, os dois comerciais parecem nos dizer: experiência real de vida é hoje algo pouco importante; fique numa boa que é possível conhecer o mundo inteiro e falar com todas as pessoas possíveis sem sair do seu canto. Na mais completa solidão compartilhada.

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Depois de relutar bastante, de ignorar solenemente Orkut, MSN e Twitter, entrei há pouco para o Facebook. Alguns amigos e minha mulher me convenceram de que este seria outra coisa, mais adaptável ao meu temperamento esquizóide, afeito à reclusão, à leitura e ao silêncio (cada vez mais) e simultânea e paradoxalmente (para alguns) ainda fascinado pelas ondas mundanas que quebram na praia da inquietude. Lá no FB, segundo eles, poderia postar meus textos, discutir idéias com pessoas afins e ser feliz.

Pois bem. Em um mês e meio de Facebook, constato o óbvio: as possibilidades de se atingir o maior número de pessoas são claramente maiores do que através do e-mail (o aborrescente do comercial de alguma forma estava certo). Mas por outro lado observo que é uma tendência muito grande usar o Facebook principalmente para uma comunicação mais direta, rasteira e cotidiana. Por exemplo: fulano diz: “Amarelo!” ou “Que frio!” – e imediatamente pipocam comentários a respeito do que talvez só interessasse aos envolvidos. A questão é que pelo lado positivo se pode comunicar com muito mais gente ao mesmo tempo do que o tempo de cada um permite se a comunicação fosse feita individualmente. É muito fácil, por isso, saber quem está de ressaca ou acordou apaixonado. A exposição espontânea é espantosa.

Percebo ainda que a sociabilidade virtual é bem relativa. Tirando as exceções fortuitas dos famosos ou muito populares, só tem olhos (e boca) para você praticamente quem já é conhecido. Agora, o maior teste é para a ansiedade e a insegurança de checar a todo momento se alguém curtiu ou fez algum comentário a algo postado. Isso é terrível. Sem falar nos que nos humilham com milhares de amigos. Eu, por enquanto, estou nos meros 150. Mas vou continuar insistindo, lentamente. Alguém aí está me vendo?

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Um amigo me conta revoltado que se instalou na loja embaixo de seu prédio uma Igreja Universal. Ele mora no segundo andar. Ao ouvir a barulheira dos infernos, vindo dos cânticos e dos Glória a Deus de praxe, foi reclamar com o porteiro. Ao que este comentou: “Pior é que eles pensam que Deus é surdo.”

Um poeta, o porteiro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Um pé-sujo diferente

DE BAR EM BAR - REBOUÇAS

– Bota uma aí pra queimar a garganta.

O atendente serve uma dose generosa de 51.

– Posso cair dentro?

O trabalhador humilde vira tudo e faz aquela careta. Normal. Esta é uma cena que poderia ter acontecido em qualquer pé-sujo da cidade. Mas foi aqui no Rebouças, um pequeno grande boteco. Enquanto espero meu convidado chegar, sento-me num dos poucos bancos do balcão, peço uma Antarctica e observo o ambiente.

O bar é de dia uma pequena porta na Rua Maria Angélica. À noite ele cresce com mesinhas pela calçada. Nas prateleiras acima do balcão, noto garrafas de vinho que fogem ao padrão pé-sujo. Como também em relação às cachaças, aqui tem marcas como Lua Cheia, Germana, Magnífica, Salinas, Bento Velho, Chico Mineiro e Rainha do Vale. Não é pouca coisa. Um dos fregueses beberica uma dose de Red Label, ao lado do trabalhador que virou a 51.

– A música tá muito careta! Cadê os porras-loucas de hoje?

Quem fala é um senhor jovem, mais jovem do que muita gente que tem 18 anos. Discorre também sobre eleições, elogiando o candidato socialista Plínio de Arruda Sampaio, sobre vendedores de picolé no Pacaembu e seu método original de venda e ainda sobre a idade avançada das aeromoças atualmente. Interessante figura. Descubro depois que se trata do pianista Guilherme Vergueiro (não sabia como ele era). Mas eis que chega ao Rebouças meu convidado Toni Platão, que, antes de me dar um abraço, para pra falar com todo mundo. Aqui ele está em casa.

Toni Platão é, sem nenhum favor, um dos maiores cantores do Brasil. Num país que prima por excelentes cantoras, onde nasce uma diva a cada semana, Toni é quase um artigo de luxo. Deveria estar sendo disputado a tapa pelas gravadoras em crise. Mas a maioria delas sofre de miopia aguda. Toni Platão, gaiato, sempre que me encontra se refere à minha canção (em parceria com Frejat e Maurício Barros) Por você como “aquela canalhice”. Em seguida emenda: “Mas a Deborah adora”. Deborah é sua mulher, a coreógrafa Deborah Colker. Ainda bem que a Deborah adora.

Sentamo-nos numa mesinha na calçada. Para acompanhar a cerveja e o bom papo, peço uma empadinha de camarão. Veio ótima. Peço mais uma. Outras opções da casa: bolinhos de bacalhau, de camarão com catupiry, pastéis de carne, queijo, camarão e carne seca, sanduíche de carne assada, cachorro quente, presunto Parma. Todos os petiscos expostos parecem gozar de boa saúde.

Como não poderia deixar de ser, o assunto gira em torno de futebol, especificamente sobre como equilibrar o casamento e os 1500 jogos que passam na tevê, música digital (“tá faltando o discurso”) e filhos eternos. Pelo celular, Platão monitora o estudo do seu Antonio Bento, de 10 anos, que tem teste de matemática no dia seguinte. E ainda cumprimenta a nova leva de frequentadores, agora o turno da noite. Ele conhece desde o negão que coordena o ponto de táxi em frente, o Lafond (“aqui todos têm apelido”), até a florida mesa ao lado, recheada de gatas extraordinárias, como diria Caetano. Vai começar o jogo da nova seleção brasileira. Vamos para o interior do bar. Tudo certo no Rebouças – e no campo, com Ganso, Neymar e Pato. Saúde e até a próxima.

Bar Rebouças – Rua Maria Angélica 197, Jardim Botânico (2286-3212)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Santa utopia

“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”

(Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Bigodes, chapéus e um Robin Hood pós-moderno

A SOMBRA DO FAQUIR - A QUEM INTERESSA?


Inauguro hoje nesse espaço uma crônica freestyle, A Sombra do Faquir. Como a De Bar em Bar da vez ficou adiada para a outra semana por conta da agenda do convidado (e da chuva), respirei fundo, deixei a preguiça sofrendo na janela e pronto. Escreverei sobre o que chamar a atenção, sem mote prévio, como é da natureza da crônica, esse gênero brasileiríssimo. Ela aparecerá ao lado dos pequenos textos, citações, poemas e da própria De Bar em Bar.

Abs & bjs
M

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BIGODES E CHAPÉUS

Sempre achei bigode um lance esquisito. Alguém botar um tufo de cabelo embaixo do nariz – e barbear o resto da cara. É o tipo de acessório que combina bem em poucos casos. Há bigodes clássicos que falam por si: Hitler, Sarney, Carlitos, Rivelino (na luta entre o bem e o mal deu empate). Kurt Vonnegut. A partir da minha recente obsessão por este escritor, de quem já li uns dez livros seguidos, enfileirados, começando justo pela obra-prima Matadouro 5, e tenho, graças a Deus, ainda mais uns oito na estante (quase tudo comprado em sebos), resolvi tentar mais uma vez um improvável bigodon. Isso mesmo, em homenagem a Kurt Vonnegut, o genial escritor bigode que até pouco tempo eu achava que era apenas um autor de ficção científica. Não é. É um escritor que me bateu fundo e dos grandes do século 20.

Bem, o bigode não deu lá muito certo. Meu cabelo já ficou grisalho e ralo no topo (é, amigo; velhice é ladeira abaixo). E o bigode é meio louro, meio branco. Tentei insistir, olhando-me no espelho o tempo todo para vigiar o crescimento dos pelos e tal e coisa. De início achei que estava legal, junto com uma barbicha de leve, que já tinha usado antes. Mas aí comecei a perceber na rua, na foto do jornal, no show moderninho no Oi Futuro, na propaganda de cerveja, que bigode, antes uma coisa meio cafona, agora é up-to-date. Sinal de modernidade. Comecei então a reparar no formato falho do meu bigode crescendo. E depois ainda que a minha mulher fez uma referência sem nenhum entusiasmo a respeito de minha dita homenagem (que ela não sabia ser uma homenagem), rapei fora. Que coisa mais ridícula, bigode.

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Ocorre comigo algo parecido em relação ao chapéu (cujo uso é também uma boa estratégia para deletar virtualmente a carequice, estratégia digna até, se comparada a perucas e implantes que parecem capim). Comprei um em Buenos Aires há quase um ano e nunca o usei apesar de ser muito bonito. Boné de vez em quando rola. Chapéu coco também já usei. Mas chapéu, chapéu, ainda mais depois que virou moda entre todas as bandas modernas e celebridades, fica difícil. E, assim como o bigode, também não cai bem em qualquer um. Sabem disso e usufruem da benesse meus amigos músicos Rodrigo Santos e Humberto Barros (este então tem toda uma persona cujo chapéu é parte indispensável. Fico até curioso para saber como ele é sem – sem nenhuma segunda intenção, por favor). Mas essa febre de chapéu já passou um pouco e ainda vou insistir. Dessa vez, em homenagem a ninguém. Ou melhor, em homenagem a Tom Jobim. Isso. Nada como uma motivação.

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UM ROBIN HOOD PÓS-MODERNO

Ouvido numa esquina do Bairro Peixoto, de um menino de seus 12 anos, num grupo de moleques de rua: “Só vamos roubar se for de quem tem dinheiro. Roubar de quem é pobre não tá com nada.” A vida anda tão dura que quase bati palmas.