domingo, 29 de novembro de 2009

De palmitos e lições de vida

DE BAR EM BAR - Otto

Sou daqueles que quando vai a uma churrascaria rodízio praticamente come mais palmito do que carne. Por isso, já fazia um tempo que estava para conhecer o bar e restaurante Otto. Lá é o verdadeiro paraíso do palmito. E justamente agora está rolando na casa o 5. Festival do Palmito Assado. Portanto, aqui estou na Tijuca. (Um amigo meu defende a tese de que todo carioca tem ou teve uma namorada tijucana. De fato, sou um carioca típico.)

Mas voltando ao palmito. Posso assegurar que o Otto não se esgota aí. Para começar, tem uma característica de que gosto muito: é um bar de esquina. E esquina poderosa: Conde de Bonfim com Uruguai. Pode-se sentar na varanda, pedir um chopinho e ver a vida passar em profusão. (A essa hora, meio da tarde, imperam os velhinhos. Mas há também crianças, passeadores de cachorro, marombeiros e meninas em flor.) A varanda é muito simpática. No trecho que dá para a rua Uruguai, que é onde fico, são duas fileiras de mesas de madeira com cadeiras com estofado preto. Há também uma parte interna, refrigerada e isolada com vidro fumê.

Perto de mim, há outras duas mesas ocupadas. Numa delas, um casal de seus 60 e poucos anos almoça costelinha com palmito e batata rostie. Para beber, chope. Na outra mesa, são duas meninas e um cara. Elas tomam mate e ele chope. Uma delas come um croquete do tipo alemão. As duas falam sem parar enquanto o rapaz apenas sorri, dá uns goles e, de vez em quando, atende o celular. Apesar do calor, bate um ventinho agradável.

- Quer passar um mês lá?... Quero! Passear, ir à praia, beleza. Mas prefiro essa área aqui. Queria sair do Grajaú e vir para essa região.

Se você acha que quem falou foi uma das meninas está muito enganado. Foi a senhora que está almoçando. Ela e seu companheiro são calmos e conversam articuladamente. Ela é morena, veste camiseta e saia jeans; ele, camisa pólo, calça de ginástica e sapato sem meia. Logo percebo que não formam um casal, mas que são muito amigos. Ao responder a algo que ele questiona, ela diz: “Cada um sabe daquilo que viveu.” Lembro-me de uma bela canção de Arnaldo Antunes, presente em seu novo disco, chamada Envelhecer: “A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer.” Sensacional.

Bem, vamos ao palmito. Apesar de constarem no cardápio petiscos como esbein, bolo de carne e salsicha alemã, e também pratos como picanha de cordeiro, bacalhau fresco e picanha Wessel, todos acompanhados de palmito, hoje só quero saber da estrela da casa. Peço um palmito assado na casca com molho de manteiga e alcaparras. Vem magnífico. Tão bom que peço outro, agora com molho de mel (“receita primitiva dos índios guaranis”), junto com um chope preto. Ó, Deus.

Para comprovar que não basta ficar velho, mas que é preciso “dizer venha pra o que vai acontecer”, assim que os dois coroas se retiram, sentam-se outros dois, irmão e irmã, que só reclamam da vida. A prova cabal de que é preciso uma forcinha para bem viver. E também para ainda aproveitar, amigo leitor, esse festival que vai até o final do mês. Saúde e até a próxima.

Otto – Rua Uruguai, 380, Tijuca (2268-1579)

sábado, 21 de novembro de 2009

God´s praxis

1.

Os prazeres dos seres

humanos

são articulados por

memória e jogo.



2.

O esquecimento das regras

é fundamental de tempos

em tempos.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sem beijos ousados, por favor

DE BAR EM BAR - Adega flor de Coimbra


Quarta-feira à tarde. Chove. Há, nesse momento, só uma pessoa almoçando, um negão rasta com pinta de músico. Ele bate o maior papo com o garçom. Termina de traçar seu peito de frango e de beber uma taça do vinho Pérola Gaúcho, engarrafado pela própria casa, e pede a conta. Mas, antes de sair, ao ouvirmos no rádio uma notícia relacionada ao assassinato do coordenador do Afroreggae, iniciamos um inevitável diálogo. Não há como não lamentar um fato desse, entre todos os absurdos de violência do cotidiano carioca.

O negão com pinta de músico é na verdade o contramestre Urubu, que dá aula de capoeira na Fundição Progresso – e que, por ofício e alma de artista, já desviou muitos adolescentes e jovens do crime. E o bar é a Adega Flor de Coimbra, pertinho de uma lateral da Sala Cecília Meireles. Sem dúvida, é muito agradável estar aqui, uma casa portuguesa, com certeza, fundada por seu José Lourenço, em 1938, no prédio onde morou Cândido Portinari. Inicialmente como uma mercearia que vendia laranjada, sopa caseira e bolinho de bacalhau – além do vinho, naturalmente. Daí nasceu a Adega Flor de Coimbra.

Peço um chope e o garçom me explica que agora estão apenas com cerveja (“o chope tem prazo de validade, aqui a saída não é tanta, estava dando problema...”). Peço então uma Original e um bolinho de bacalhau. A casa tem dois andares. No térreo são umas 12, 15 mesas com toalhas brancas e paninhos verdes, vermelhos e amarelos por cima. Há bandeiras da terrinha, dois barris, uma adega climatizada, vinhos expostos na horizontal, quadros do Rio antigo, um painel de Nilton Bravo, o “Michelangelo dos botequins”, uma Santa Ceia lá no alto, matérias emolduradas sobre a casa, e, ainda, em total destaque, uma plaquinha vermelha que diz: “Proibido beijo ousado”.

Pergunto ao garçom José Antônio o porquê do aviso, se já houve muitos exageros. Ele diz, com toda a calma e elegância do mundo, que não, “isso virou uma marca da casa mesmo.” Bem, há tradição para tudo. O bolinho de bacalhau, por exemplo, é campeão e também trunfo do bar; comprido e fino nas pontas, é impossível comer um só. Mas além dele há outros petiscos como cabrito aperitivo, lula à doré, iscas de peixe e sardinhas portuguesas. Entre os pratos, truta com molho de alcaparras, posta de namorado com pirão e arroz e feijoada portuguesa (com feijão manteiga e carnes nobres).

Tomo um caldinho desse feijão e converso com os garçons, o citado José Antônio e o Leandro, quando reparo que já há outros frequentadores: um casal, pelo visto, discutindo a relação. Sentados lado a lado, cada um olha para o seu infinito particular, através da janela em frente. Ela, loura de cabelo encaracolado, chora. Ele, de óculos e com a frieza de um cirurgião, bebe vinho. Parece o fim. Peço uma sardinha portuguesa grelhada e a saideira. A sardinha vem ótima e com um molho delicioso. Outros casais começam a chegar. Mas, antes de partir, observo uma reviravolta: o primeiro casal está agora aos beijos. Bem que mereciam um beijo ousado. Saúde e até a próxima.

Adega Flor de Coimbra – Rua Teotônio Regadas, 34, Lapa (2224-4582)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Balada da precária solidão

(para Sylvia)

Agora faltou luz
É como se caísse um braço
Ou se faltasse água.
Em casos como esse
Espera-se que sejam dez minutos
Mas já se vão duas horas e meia.
O computador estava ligado
O som, claro, permanecia ligado
(Escutava música clássica – Chopin
Por Nelson Freire. Sublime. Ideal para transcender)
A desconexão com as tomadas do mundo agora
É total
(Só não é total porque ainda há os
Telefones não elétricos).
Parece que o blecaute atingiu vários estados
E o Brasil não é tão moderno quanto parece.
Agora há vários solitários desesperados
Porque não podem ligar a TV.
As horas são baleadas
Sem que se possa fazer nada.
Escrevo à luz de velas.
Penso em minha mulher
Que agora mora noutra casa
E tenho achado melhor assim
- Agora nos amamos mais
Com a volta de algum mistério.
Essa falta de luz
(Já que não posso tê-la)
É dedicada a ela.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

As meninas de bicicleta

(Um poema de Vinícius pra refrescar:)


BALADA DAS MENINAS DE BICICLETA

Meninas de bicicleta
Que fagueiras pedalais
Quero ser vosso poeta!
Ó transitórias estátuas
Esfuziantes de azul
Louras com peles mulatas
Princesas da zona sul:
As vossas jovens figuras
Retesadas nos selins
Me prendem, com serem puras
Em redondilhas afins.
Que lindas são vossas quilhas
Quando as praias abordais!
E as nervosas panturrilhas
Na rotação dos pedais:
Que douradas maravilhas!
Bicicletai, meninadaA
os ventos do Arpoador
Solta a flâmula agitada
Das cabeleiras em flor
Uma correndo à gandaia
Outra com jeito de séria
Mostrando as pernas sem saia
Feitas da mesma matéria.
Permanecei! vós que sois
O que o mundo não tem mais
Juventude de maiôs
Sobre máquinas da paz
Enxames de namoradas
Ao sol de Copacabana
Centauresas transpiradas
Que o leque do mar abana!
A vós o canto que inflama
Os meus trint'anos, meninas
Velozes massas em chama
Explodindo em vitaminas.
Bem haja a vossa saúde
À humanidade inquieta
Vós cuja ardente virtude
Preservais muito amiúde
Com um selim de bicicleta
Vós que levais tantas raças
Nos corpos firmes e crus:
Meninas, soltai as alças
Bicicletai seios nus!
No vosso rastro persiste
O mesmo eterno poeta
Um poeta - essa coisa triste
Escravizada à beleza
Que em vosso rastro persiste,
Levando a sua tristeza
No quadro da bicicleta.


VINÍCIUS DE MORAES