segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quatro vezes 'Santa' e um simples obrigado

DE BAR EM BAR – Santa Satisfação

Eu, um Santa Cecília, fui nos últimos dias a um bar na cidade em polvorosa, na Rua Santa Clara, em plena “Guerra Santa” (por mais absurda que seja a expressão). O nome do bar? Santa Satisfação. Não é exatamente, mas é um pouco, o que sentem os cariocas nesse momento em que, pela primeira vez em muitas décadas, o poder público decide enfrentar o poder paralelo do tráfico e ganhar a parada. Diria o Lula que nunca houve na história desse país um enfrentamento à marginalidade tão vencedor (mas é melhor deixar o futuro ex-presidente o mais fora dessa que der para que possa esvaziar as gavetas do Planalto e fazer as malas). O fato é que a população, cansada de tanto desmando da bandidagem, está batendo palmas e aguarda com apreensão os próximos capítulos dessa guerra com direito a show de cobertura ao vivo e comentarista na televisão. Vamos ver o que será feito na sequência, com os traficantes sem sua fonte de renda e, principalmente, o que será feito com a molecada dos morros ocupados, pois sem um trabalho social de educação e arte tudo isso não será mais do que um mero band-aid gigante.

Peço uma cerveja Original e desvio meu pensamento para o bar. Afinal, a vida tem que prosseguir com o cidadão reocupando o seu espaço e a alma da cidade de volta. Duas e meia da tarde e muita gente ainda está almoçando nesse simpático bistrôzinho. Como é típico de Copacabana, especialmente num trecho tão perto da praia, algumas mesas estão ocupadas por turistas. Por falar nisso, vim bater aqui por recomendação do cantor e compositor Zeca Baleiro, um maranhense radicado em São Paulo. Uma quase-vergonha para mim, ainda mais em se tratando de um bar tão perto de minha casa. Mas felizmente nunca é tarde para o conhecimento, inclusive o de botequins e que tais.

O Santa Satisfação (um belo nome), com suas paredes metade verdes e vermelhas e metade em pátina branca, poderia ser catalogado tanto na categoria bar pé-limpo, assim como em um charmoso Café para um lanche ou restaurante para refeições leves. Ou seja, um autêntico bistrô de elegante alma feminina. Possui, no salão interno, mesas e cadeiras brancas com estofados coloridos (e sofás encostados nas paredes); e mesinhas, também de madeira porém menos confortáveis, ao ar livre na calçada. Escolho esta última localização, pois Copacabana com seus excessos, apesar de tudo, continua uma festa para os olhos. E é o que acontece quando passa na rua a amiga e escritora Ana Paula Maia, que gentilmente me dá de presente uma coletânea de contos de que participou, Todas as guerras. Nada mais atual. A propósito, Ana Paula escreveu sobre a guerra do Vietnã.

Peço uma outra cerveja, agora uma Bohemia long neck (já que a Original 600 ml não tem mais). Bate uma fome e vou consultar o cardápio. Aqui se pode degustar porções de rosbife e peito de frango, carpaccios de carne ou salmão, escondidinho de carne-seca, empadas, pastéis de forno e omeletes de camarão com queijo, salmão ou presunto. Entre os pratos, massas como penne rústico, fusilli ao pesto, farfalle de Roma, espaguete mediterrâneo e saladas variadas como Ceasar salad, caprese e primaveras carioca e francesa. Para beber, cervejas Devassa, Skol, Stella Artois (além das já citadas), vinhos, uísques, vodcas e caipirinhas.

Vejo numa mesa ao lado uma porção que não identifico no cardápio e pergunto à garçonete o que é. Trata-se do couvert da casa, que vem com batatas calabresas, torradas e duas pastinhas, uma de tomate seco e outra de gorgonzola. Peço um couvert igual e seus ingredientes caem à perfeição para acompanhar a cerveja. A esta altura o bar já deu uma esvaziada e posso trocar de mesa pois o ar-condicionado posicionado para fora do estabelecimento me incomoda, vindo diretamente em minha testa. Chego a mudar de mesa duas vezes, mas o ar canalizado parece me perseguir de forma tinhosa e cômica, até que decido ir para o salão interno e comer algo mais substancial. Algo como um espaguete Alfredo (com escalopes de frango e lascas de cogumelo ao molho branco com vinho e pimenta calabresa).

Mas antes, ao me levantar para uma das trocas, percebo que alguém numa mesa ao redor deixou cair uma caneta e vou apanhá-la. Ao devolver ao dono, este estica a mão para recebê-la sem se dignar a agradecer, nem ao menos a esboçar um sorriso falso. Aquilo me causa tanta irritação que encaro o sujeito e ao lhe passar o diabo da caneta não resisto e digo: “Obrigado, né.” O cidadão me olha como se eu tivesse pronunciado algum absurdo e vira o rosto. Por essas e outras, constato o óbvio: a alma nobre e grande da cidade não está precisando voltar só aos violentos morros cariocas. Está fazendo falta também no asfalto, onde (apenas) teoricamente estariam as pessoas mais civilizadas. Ah, sim: o espaguete Alfredo veio ótimo. Saúde e até a próxima.

Santa Satisfação – Rua Santa Clara 36-C, Copacabana (2255-9349)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Uma bela e triste tarde alvinegra (que jamais será esquecida)

A SOMBRA DO FAQUIR 8


Uma das maiores alegrias para quem adora futebol e tem filhos é passar a paixão pelo clube por que torce para a prole. Nesse ponto não tenho do que reclamar da vida. Meu filho Júlio é tão botafoguense quanto eu, se não for ainda mais fanático. Pois bem, no último domingo fomos juntos assistir ao jogo do nosso time numa condição especialíssima: na companhia ilustre do presidente do clube, Maurício Assumpção.

Esta é uma situação que a rigor não me entusiasmaria muito. Ficar de salamaleques com o poder, mesmo sendo o do clube da estrela solitária. Mordomias no camarote presidencial, tapinhas nas costas, sorrisos elogiosos e papo furado. Mas acontece que sou um admirador incondicional do trabalho da atual diretoria do Botafogo. Em pouco tempo ela deu jeito no clube e o colocou de volta ao caminho certo, de proeminência no futebol brasileiro.

Se no ano passado, como nos anteriores, brigamos para não ser rebaixados, neste, estamos (ainda) na luta pelas principais posições da tabela. O clube, que é o que mais cedeu jogadores à seleção brasileira em todos os tempos, voltou a dar destaque aos craques do passado (inaugurando, inclusive, estátuas em seu estádio de monstros sagrados como Garrincha, Nilton Santos e Jairzinho). O Botafogo voltou a ter ídolos, como Loco Abreu e Maicosuel. Ganhou o último campeonato carioca por antecipação ao vencer os dois turnos (depois de levar uma goleada humilhante do Vasco). Teve um comportamento humanista ao tratar de forma sensível o jogador Jóbson, um talento a ser lapidado, que fora suspenso pelo uso de drogas. E investiu com inteligência no marketing, atraindo torcedores das novas gerações. Isso tudo sem gastar fortunas.

O presidente Maurício Assumpção, que é dentista, por coincidência é professor de odontologia da mesma faculdade onde meu irmão, seu xará, também dá aulas. Num jantar recente, os dois se encontraram e meu irmão comentou que eu e meu filho éramos botafoguenses roxos. O presidente, nem titubeou: “Quero convidá-los então para assistirem comigo a um jogo em meu camarote.” Assim começou a saga. Recebemos o convite para ver o Botafogo contra o Internacional de Porto Alegre.

A princípio seria um jogo fácil. O Internacional, que não aspira mais a grandes coisas na competição e está voltado para a final do campeonato Mundial de Clubes, em dezembro, viria com um time misto e o seu goleiro seria nada menos do que o quarto reserva. E o Botafogo, por sua vez, jogando em casa, motivado pela disputa por uma vaga na Taça Libertadores (sonho de consumo de todos os times brasileiros), teria tudo para passar por cima. Já me via após a partida no vestiário conversando com os jogadores e comemorando com o presidente num restaurante qualquer.

Eu e Júlio chegamos cedo ao estádio. Meu filho tinha uma prova importantíssima de Química no dia seguinte, mas eu, pai compreensivo, liberei sua vinda desde que se matasse de estudar nos dias que antecederam ao jogo. Júlio, num gesto puramente teatral, chegou a levar uma mochila com cadernos e livros para o Estádio Olímpico do Engenhão. No camarote fomos os primeiros a entrar. A visão do campo era estupenda. A felicidade estava estampada em nossos rostos. Recebemos os cumprimentos e as boas-vindas do vice-presidente Antonio Carlos Mantuano e do diretor Maurão. Aos poucos foram chegando os outros convidados. No gramado, rolava um show de Michael Sullivan, o compositor alvinegro de mil e um sucessos. A torcida fazia um bonito espetáculo.

Eis que surge no camarote o ex-jogador da seleção portuguesa da Copa de 1966, o craque Eusébio, na época comparado a Pelé. Bem conservado, uma celebridade planetária. Pouco tempo depois surge o presidente. Simpático, fala de forma atenciosa com todos, mas sem se deter muito. As muitas atribuições e a tensão de um jogo capital para nossas pretensões fazem com que ele troque apenas poucas palavras com convidados distantes como eu. Tudo bem. Chegam também ao local três dirigentes de um clube uruguaio, se não me engano o Nacional de Montevidéu. Depois da experiência bem-sucedida com Loco Abreu deve vir outro atleta daquelas bandas para o alvinegro.

De repente, eu e Júlio olhamos para um dos camarotes ao lado e vemos uma parte considerável do time que seria titular do Botafogo: Maicosuel, Herrera, Fábio Ferreira, Somália (mais o reserva Danny Moraes, porém este não estava relacionado para o jogo por pertencer ao adversário). Ainda faltou o meio-campo Marcelo Mattos. Todos contundidos. Num campeonato longo como é o Brasileirão é comum os times terem desfalques por contusão. Mas no caso do Botafogo, não só perdemos nossa principal contratação (Maicosuel), como as lesões foram todas muito graves, impossibilitando os atletas de se recuperarem a tempo de voltar a atuar ainda este ano. E, como reza a lenda, há coisas que só acontecem ao Botafogo.

Bem, vamos ao campo. O time começou pressionando e deixou de marcar logo de cara alguns gols. O tempo foi passando, a pressão arrefeceu, era chutão pra lá e pra cá e nada. Final do primeiro tempo, zero a zero. Na etapa final, o time continuou a não jogar bem, a bola parecia queimar nos pés e o sonolento time do Inter abre o placar aos 20 minutos e amplia aos 29. O Botafogo desconta aos 30, mas um nervosismo avassalador toma conta do time, da torcida e do presidente, que torce com a fúria dos desesperados. Perdemos. O Botafogo estava invicto em seu estádio havia sete meses.

Clima de velório no camarote. A profunda decepção está estampada no rosto de meu filho e dos demais. Sinto vontade de chorar mas seguro a onda. O presidente, a um canto, olha para o nada e verte lágrimas de meu mundo caiu. Fico na dúvida entre falar com ele ou deixá-lo sofrer em paz. Acabo optando por sair educadamente e me despedir dele, agradecendo mais uma vez o convite. Ele mal consegue responder. Imagino que tenha pensado: “Que pé-frio! Esse eu não convido nunca mais...” No dia seguinte, Júlio se deu mal na prova de Química. Mas, apesar de tudo, foi uma bela tarde – triste e inesquecível. E o Botafogo ainda tem chances matemáticas de conquistar a sonhada vaga para a Libertadores, dependendo de uma louca combinação de resultados. Como com o Botafogo tudo é possível, vamos aguardar. Avante, Fogão. Sempre.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quando a letra vira música

A SOMBRA DO FAQUIR 7


No domingo passado participei de uma afinada conversa com Zeca Baleiro, no último dia da Bienal de Literatura de Campos dos Goytacazes. (Sim, alentadoramente em Campos não repercutem mais apenas deploráveis problemas políticos.) Com curadoria arquitetada pela professora poeta autora de livros infantis e divulgadora incansável da literatura Suzana Vargas, no evento feito em homenagem a Ferreira Gullar e Rachel de Queiroz, estiveram entre outros nomes importantes lá na Praça São Salvador: Sérgio Sant’Anna, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, João Paulo Cuenca, Ruy Castro, José Castello, Heloísa Seixas, Lêdo Ivo, Luís Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Nelson Motta, Mia Couto, Nei Lopes, Ana Paula Maia, Fabrício Carpinejar, Michel Melamed e o próprio Ferreira Gullar, nosso maior poeta vivo. Nada mau, hein?

Mediado pelo jornalista e compositor (vencedor de vários festivais de música da região) Aloysio Balbi, o tema que nós tínhamos a destrinchar para uma plateia essencialmente jovem, Zeca Baleiro e eu, era exatamente o título desta crônica: Quando a letra vira música. Como Zeca ficou preso no trânsito, tive de encarar a arena jovem lotada e começar sozinho. Poderia dizer, para ir direto ao ponto, que isso acontece, a letra virar música, no momento em que há o encaixe adequado entre letra e música; isto é, entre letra de um lado e melodia e harmonia do outro. Quando a composição fecha em uma coisa só e não há mais lados. Simples assim. Mas achei melhor começar lendo o poema que deu origem à minha canção Por você (em parceria com Frejat e Maurício Barros). Foi uma decisão acertada.

Curiosamente o tema da letra de música tem sido privilegiado nos últimos dias. Estabeleceu-se uma polêmica em jornal entre dois compositores-ensaístas de gerações diferentes que admiro, Francisco Bosco e José Miguel Wisnick, polêmica (ou diálogo) sobre o tema, especificamente sobre a letra de música que é feita antes que haja uma música propriamente. Defendeu Francisco que esta pertenceria a um gênero absurdo. Wisnick não entendeu a especificidade e falou que a letra em geral não seria um gênero absurdo. Francisco se explicou mais uma vez e Wisnick acrescentou, com carinho e respeito pelo interlocutor, que o outro falava de um gênero ao qual se dedicava, mas sem declarar explicitamente sua adesão.

Acho saudável e revelador que o debate se dê sobre o gênero que é meu também, ainda mais num nível tão elevado de argumentação, mas entendo que eles discutiram quase a espuma da onda que quebra na praia. O que importa, em minha opinião (e acredito que para o público em geral), não é saber se a letra foi feita antes, depois ou durante. Importa realmente é que a música seja boa, independentemente do processo de criação. Que a melodia e a letra estejam unidas de forma harmônica e bela, isto sim é digno de relevância para gregos antigos e baianos modernos.

Também nos últimos dias iniciou-se um curso de Poesia e Letra de Música, aqui no Rio, ministrado por Antonio Cícero, filósofo, poeta e letrista de primeira ordem. Fiquei dividido entre aproveitar o tempo necessário para outras tarefas literárias e me dar o prazer renovador de ouvir o mestre, mas resolvi fazer. No ano passado eu mesmo tive a oportunidade de dar um curso unindo os dois gêneros e foi uma experiência muito interessante. Agora, com apenas uma aula assistida, já tenho a certeza de que fiz a coisa certa. Antonio Cícero, além de excelente poeta, é culto, extremamente inteligente e o melhor: fala de forma simples e bem-humorada.

Voltando a Campos e à minha troca de impressões com o inventivo Zeca Baleiro, que começou na Bienal e se estendeu a uma mesa de bar depois do evento. Ainda que ele, um artista múltiplo, autor, dentre outras criações, de um disco extraordinário em que musicou poemas de Hilda Hilst e que agora está lançando o livro Bala na agulha (reflexões de boteco, pasteis de memória e outras frituras), já conhecesse um pouco do meu trabalho e tenhamos alguns amigos músicos em comum, foi um papo que fluiu fácil desde o abraço inicial. Foi bem recebido pela curiosa plateia e nos deixou à vontade para falar sobre inspiração, o trabalho quase invisível do letrista que é só letrista, o momento de transição do mercado, a falta de discurso das novas bandas de sucesso em oposição à nossa inesgotável fonte de talentos musicais, o descartável e o que não morre nunca. E, claro, futebol, paixão dos dois – aí já com um copo de chope na frente e o relaxamento de quem já tinha cumprido o seu dever. Por um instante me senti mesmo como que seu parceiro de fé na união indissociável de vida e arte, letra e música. Valeu, Zeca: saúde e até a próxima.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Luizinho Vermelho e o verão de 68

DE BAR EM BAR - Garota de Bonsucesso

Condensar as experimentações de uma ida ao botequim nem sempre é tarefa das mais fáceis – embora a impressão que dá seja exatamente a oposta dado o prazer inegável que é sentar num bar, pedir um chope e ver a vida passar diante dos olhos. Só que são tantas variáveis, tanto aleatório para botar no papel... Mas dessa vez, amigo leitor, confesso que foi quase como que uma tarefa impossível. Isto porque meu convidado foi o poeta, letrista, produtor e metralhadora cultural Tavinho Paes. Como encaminhar o chão da conversa? Como contê-lo nesse espaço? Só mesmo indo a Bonsucesso para saber. Foi o que fizemos.

Levados de carro por uma loura gentil e bonita, a designer Ariella Cristaldi, de Copacabana até o bairro onde Tavinho morou quando foi adolescente, a conversa de bar começou logo no longo caminho (aliás não há mais nenhum horário sem engarrafamento no Rio de Janeiro. Tudo é hora do rush. Alô, Olimpíadas, Copa do Mundo. Alô, carioca, poder público: cadê o metrô disseminado? Cadê ciclovia pela cidade inteira?).

Mal saímos do Rebouças, Tavinho Paes entrou no túnel do tempo. Seus olhos estouravam champanhe ao contar as aventuras loucas que viveu lá pelos seus quinze anos. Como o pai teve altos e baixos financeiros pela vida, o carioca Luiz Octavio Paes de Oliveira, nascido literalmente na Praça da Apoteose, morou de Ipanema a Cascadura. Passando pela Bonsucesso de 1968, com o mítico bandido Lúcio Flávio (favor não confundir com o hoje apagado e perseguido meio-campo do Botafogo) passeando de lambreta com os maiores brotos da área pela Avenida Paris. Sim, pois as avenidas de Bonsucesso têm nome de famosas cidades internacionais.

Quando, depois de um bom trecho na Avenida Brasil, viramos à direita e entramos no bairro, Tavinho mostrou-nos orgulhoso seu conhecimento das ruas e dos estabelecimentos de então (o cinema Paraíso, a favela Perereca...). Vários já não existem mais. Como o primeiro bar para onde nos dirigimos (“um dos primeiros a ter chope na Zona Norte”). Virou uma lanchonete. Tavinho pensou rápido numa outra possibilidade e lá fomos nós para o cruzamento das Avenidas Bruxelas e Nova Iorque. Perfeito. Um bar de esquina, com varanda, e de nome emblemático: Garota de Bonsucesso.

O calor é senegalesco. O relógio digital de rua marca 33 graus, mas a sensação é de 52. E o verão mal começou. “O vento não tem como entrar aqui no bairro”, esclarece o coautor de tantas músicas de êxito como Totalmente Demais, Radio Blá, Sexy Iemanjá, Linda Demais, parceiro de muitos artistas, entre eles Lobão e Arnaldo Brandão, o mais constante (com quem compôs “Bonsucesso 68”: “Lúcio Flávio morava na Roma / Fernando C.O. lá na New York / Tavinho era um menino na Bruxelas / Entre a Londres e a Paris” *).

Sentamos na varanda do lado da Avenida Bruxelas, na mesma quadra onde Tavinho morou e também onde Zeca Pagodinho fez seus primeiros shows. Pedimos vários chopes e para acompanhar espetinhos de carne de porco e linguiça mineira com farofa e molho à campanha. Nada veio muito bom, mas isso não tinha a menor importância. Ariella, fiel à sua função de nos rebocar ao final sãos e salvos, pediu uma banana split com três bolas de sorvete de chocolate, mas como não tinha sorvete de chocolate, contentou-se com uma porção de batata frita. Na verdade, para ela estava tudo bem pois também se divertia com as peripécias do nosso Tavinho.

Mas, por desencargo de consciência e justiça ao bom atendimento, cito algumas outras opções do cardápio: casquinha de siri, camarão à milanesa, bolinho de bacalhau e de carne seca, queijo prato e salaminho. Entre as refeições, espaguete à bolonhesa, churrasco misto, filé à Osvaldo Aranha, polvo à portuguesa e posta de peixe à Garota. Um cardápio bem diversificado.

De repente, Tavinho Paes se levanta e vai até o balcão conversar com o gerente. E volta com uma cachacinha na mão. Dividimos a dose e mandamos descer outra. Tavinho fala ao garçom: “Se eu pedir mais uma, ignora.” Achei melhor nem saber da marca. As seguintes doses, quem pediu fui eu. Tavinho conta então aquela que é a história central do nosso encontro e envolve o citado bandido Lúcio Flávio.

Lúcio Flávio (não confundir por favor com o perseguido meio-campo do Botafogo), cujo sonho – dizem – era se tornar pintor, político ou padre, era bandido numa época em que a marginalidade romanticamente fazia pegas em Gordinis e roubava carros no subúrbio para revender na Ilha do Governador. Bons tempos. Porém, como hoje, Lúcio Flávio e sua gangue (Toninho Caroço, Mico Preto, Fernando C.O. e outros) utilizavam os adolescentes para serem seus olheiros quanto à chegada da polícia. Tavinho foi um desses. Na época era o Luizinho Vermelho (ou Vermelhinho), não porque fosse precocemente comunista, mas porque era como ficava ao pegar sol.

Certa feita, estava num dos três carros da bandidagem quando chegou a polícia. O motorista do primeiro era Lorde GK (corruptela de Lorde Jeca), o melhor piloto da quadrilha, que disse para os moleques (entre eles, Luizinho Vermelho): “Fiquem tranquilos. Vocês estão comigo.” E começou uma perseguição de filme americano. Tavinho sentiu-se como se estivesse dentro da tela do cinema Paraíso. Foi uma das maiores aventuras do homem que decidiu entregar sua vida, alguns anos depois, à aventura da poesia e da arte. Sábia decisão. Saúde e até a próxima.

Garota de Bonsucesso – Rua Nova Iorque, 212, Bonsucesso (2564-3013)

* link para um vídeo da música:
http://www.letradamusica.net/hanoi-hanoi/bonsucesso-68.html (Programa Rock Brasil – TV Manchete – 1987)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O poeta pornográfico

A SOMBRA DO FAQUIR - 6


Certo dia toca o telefone e recebo o pedido para dar uma espécie de consultoria a um psiquiatra. Ele queria publicar um livro de poesia. Conta-me, o próprio, que tem vários livros publicados em sua área, mas no gênero onde queria se aventurar agora não conhecia os caminhos, nem ninguém. Esclarece que são poemas eróticos escritos no formato tradicional de sonetos. E que gostaria de publicar sob pseudônimo. Sem saber como começar, pergunto-lhe como chegou a mim. (Penso logo na internet, site, blog...). Ele diz que viu uma matéria num jornal sobre uma oficina que ministrei há algum tempo e correu atrás do telefone. Peço que me mande os poemas por e-mail para que pudesse ter uma opinião sobre o trabalho. Ele retruca que não possui computador e onde mora não existe internet, se poderia mandá-lo manuscrito pelo correio. Revela que trabalha no interior e tem também um consultório no Rio onde dá expediente uma ou duas vezes por mês. Por coincidência fica perto de onde moro, no Bairro Peixoto. A situação, apesar da enorme chance de roubada, era tão estranha que ficou interessante.

Tive uma grande surpresa ao ler os poemas.

O meu receio de um perigoso tarado sexual mostrou-se infundado. É realmente um cara sério, de verdade, casado (bem casado), com duas filhas. Filho de uma família abastada do interior fluminense que tinha uma indústria alimentícia, recebeu uma boa educação, vive bem, mas não acumulou patrimônio. Gosta de um bom vinho. Admirador de Baudelaire.

É dele o seguinte tributo: “Meu caro irmão Baudelaire, / em quem em vão eu me inspiro, / o que o teu Poema quer / é tudo o que eu admiro. / És autor do que eu prefiro / sobre o homem e a mulher. / (As palavras que eu profiro / são frouxas, para quem quiser...) / Tudo aquilo que a tua verve / dá sob o nome de flores / é também o que em mim ferve, / mesmo sendo eu tão banal / – pois sinto minhas tuas dores, / é meu também o teu mal...”

A referência ao poeta das flores do mal não se esgota aí: o livro se chama As florzinhas do bem – Sonetos de bandalha, blasfêmia e escracho. Está sendo publicado agora pela editora Íbis Libris. Há poemas sobre o prazer solitário (“Confissões do punheteiro”), a iniciação (“O menino e a puta”), a performance (“Conselhos para bem foder”), excrementos (“Homo cagandis” e “O mijão”). Não resisto, aliás, a reproduzir um trecho deste último: “Minha rica piroquinha / reduziu-se a um bom mijão. / Toda a potência que tinha / esvai-se em mijo no chão... / Quem se tinha por machão / e a quem mijar não convinha / precisa agora da mão / pra sacudir a gotinha...”

E há, evidentemente, o sexo com fartura. Sexo na veia. Sexo pelos poros: “Toda mulher que é pudica / – tão cheia de pudicícia! – / quando prova boa pica / sempre acha uma delícia! / Quão mais severa a moral / mais se ressente de um pau, / mais falta tem de um caralho! / Pois após tê-lo engolido / e entre as pernas sentido / a força de sua broca / logo esquece a timidez: / quer mais e mais, e outra vez, / o vai-e-vem da piroca!”.

Encantei-me com vários dos poemas que, apesar do tema controvertido, não têm nada de chulo. Muito pelo contrário, são inteligentes, simples (e não simplórios), bem-humorados, feitos por alguém que certamente leu bastante e escreve com regularidade. Incentivei-o a publicar com seu próprio nome. Mas ele, mesmo tentado, achou que não cairia bem um poeta pornográfico para a sua clientela um tanto conservadora de cidades do interior. Adotou o pseudônimo Gil Tramontana e uma das dedicatórias do livro é para Carlos Zéfiro, cujos desenhos eróticos foram como que a Playboy de toda uma geração.

Por detrás da respeitável estampa de experiente psiquiatra, magro, elegante, de barba, cabelos prateados e nada escassos para seus 62 anos, vive um jovial safado dos olhinhos infantis, um fauno incorrigível. Grande figura o novato Gil Tramontana, um cara que merece ser lido.