quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma ilha de edição...

“A memória acredita antes que o conhecimento recorde. Acredita mais tempo do que recorda, mais do que o conhecimento pode imaginar. Conhece, recorda, acredita num corredor metido num grande edifício truncado, frio e cheio de ecos, construído de tijolo vermelho, escuro, tisnado por mais chaminés do que as suas próprias, situado entre fábricas fumarentas, num recinto sem ervas e coberto de cinza, rodeado como se fosse uma penitenciária ou um jardim zoológico, por uma cerca de ferro e arame de três metros de altura, onde, em ondas intermitentes, trajando uniformes azuis do mesmo pano, num pipilar de pardais os órfãos entram e saem; entram na recordação e saem, mas no conhecimento permanecem tão constantes como as paredes lúgubres, as lúgubres janelas onde, sobre a fuligem das chaminés, cujo número aumenta todos os anos, a chuva traça riscos que parecem lágrimas negras.” (William Faulkner, Luz em agosto)

sexta-feira, 18 de março de 2011

O Embaixador da Janela e Vovô Garoto

A SOMBRA DO FAQUIR 14



Para quem não sabe o Bairro Peixoto tem um embaixador. Ele costuma dar expediente em sua janela na entrada do pequeno oásis de Copacabana. Por lá passa todo santo dia uma multidão de pessoas que trabalha ali por perto, moradores, vendedores ambulantes, curiosos, desocupados. Porém não é raro ver alguém em pé na calçada olhando para cima e trocando sem pressa uma prosa com ele. Quando me mudei para cá logo percebi que se tratava de alguém que tinha o dom da conversa e de entreter interlocutores dos mais variados. Não imaginei na ocasião que eu também seria um desses.

O nosso embaixador não usa fraque nem pincenê. Provavelmente não domina outras línguas, e nem mesmo o idioma nacional com a perfeita fluência de um diplomata. Seu uniforme é um calção, sua fala é a das ruas. O embaixador boa praça é um autêntico vovô garoto. Surfista, alto, bonito, eternamente queimado de sol. (Poderia tranquilamente ter sido um famoso modelo internacional, mas sua filosofia zen não permitiria). Tem mais de 50 anos, mas aparenta sem nenhum favor 15 a menos (seu nível de estresse é abaixo de zero). Até onde se sabe tem um trabalho pra lá de vago de corretor de vendas. Ele próprio faz o seu horário e constrói sua agenda de acordo com o tamanho do mar. Porque se tiver dando onda ele certamente será encontrado na praia da Barra, do Recreio, da Macumba, da Prainha, ou mesmo do Leme. Jamais num escritório. Jamais.

Apesar de bastante cobiçado pelas atiradas neobalzaquianas de 40 e tantos anos da área e de outras regiões e idades também, ele tem namorada fixa, naturalmente uma bela mulher, bem mais jovem, evidentemente também surfista, e ainda skatista e dona de dois cachorros. Seu filho, em torno dos 20, mora com a ex-mulher e parece seu irmão mais novo. (Até poucos meses atrás o embaixador morava com a mãe, como autêntico vovô garoto; no entanto recentemente ela subiu de vez para o andar de cima). Há quem diga que o vovô viu a onda e também arranha alguma coisa no violão. Pode ser.

Outro dia, passava eu pela sua esquina e ele me cumprimenta: “Aí, tô gostando de ver!” É que, devido ao seu posto privilegiado, ele foi uma das principais testemunhas da minha virada rumo a uma vida mais saudável neste início de ano. Como uma espécie de retorno a uma época perdida no tempo em que fazia esporte com regularidade (embora não pareça, já joguei vôlei razoavelmente e corri até maratona), recomecei a acordar cedo e ir diariamente dar um mergulho no Arpoador. Com estes hábitos vieram também as corridinhas intercaladas com a caminhada e os exercícios a beira-mar. Voltei a me sentir muito bem disposto e até menos insatisfeito com o espelho. Como se fosse um autêntico vovô garoto.

Mas nesse dia em que o embaixador me cumprimentou, eu não estava nada bem. Depois de uma viagem de carnaval em que fiquei sentindo dores no joelho e até mancando, saí de casa para fazer uma ressonância magnética. O autêntico vovô garoto desdenhou: “Isso não é nada. Bota gelo que passa. Gelo é um remédio pra tudo. Às vezes estou aqui entrevado, doendo tudo abaixo do pescoço e boto gelo; às vezes até esqueço e durmo. No dia seguinte, faço manobras na prancha que nem eu acredito. Bota gelo, Mauro, vai por mim!”

Não tive nem coragem de dizer ao embaixador que me tornei tão alérgico, mas tão alérgico, que certas coisas me trazem problemas constrangedores. Gelo é uma delas. Beber gelado um suco ou um mate mesmo no verão se tornou proibitivo. Sorvete então nem pensar. Garganta muito sensível. (Mas paradoxalmente com álcool não; o chope, a cerveja ou a caipirinha descem bem, pois o álcool dá uma anestesiada, apesar da Sylvia não acreditar em nada disso e achar até hoje, depois de dez anos, que é uma desculpa absurdamente esfarrapada. Só eu que sei.). E esta restrição nos últimos tempos se estendeu até a passar o gelo numa contusão, digamos, no tornozelo. Depois de algumas horas, é dor de garganta na certa. Portanto, agradeci a dica e segui no meu andar capenga em direção ao laboratório para fazer o exame.

Três dias depois, o resultado inapelável: tive uma fratura na tíbia por estresse. Forcei muito a barra. Fui com muita sede ao pote. Além de não ter deixado um dia sequer para descanso desde que comecei a nova fase, não prestei a devida atenção aos evidentes sinais de desgaste excessivo do corpo. Quis recuperar a forma perdida com a ansiedade de um vovô garoto fake. E deu no que deu. Então aqui estou agora, de molho e olhando inconformado pro calendário, num repouso absoluto para que a fratura incompleta não vire total, com joelheira de neoprene e bengala de apoio. Mas, se tudo der certo, daqui a um mês e meio espero de novo poder cumprimentar cedinho o embaixador na janela.

terça-feira, 1 de março de 2011

O abridor de manhãs

A SOMBRA DO FAQUIR 13


Após um longo período de sedentarismo e horários extremamente anti-sociais, para poder acompanhar amigos e parentes nas férias me treinei para acordar mais cedo e tomei gosto. Então desde o início do ano que novamente volto a levantar da cama por volta das sete, oito da manhã. E vou dar um mergulho na praia, alternando caminhada e corrida. Júlio de cara estranhou, achou que não era o pai que estava ali ou que aquilo não ia durar. Sylvia comemorou a possibilidade de estarmos juntos no fim-de-semana num turno que era praticamente inexistente. Eu, confesso que depois de dois meses me sinto até mais jovem por resgatar hábitos saudáveis e das antigas.

É importante ressaltar que uma coisa é acordar cedo para abraçar a natureza (e o esporte). Outra coisa é para sair de casa apressado para o colégio, a faculdade ou o emprego de ponto. Apesar de necessários, assim não tem graça. De qualquer forma, com tal mudança de horário o dia fica mais longo e a noite mais curta. E, já que abstrair do clima Rio 40 graus é impossível, nada tem sido tão bom como entrar dentro do verão para começar o dia, com o sol mais ameno. Para isso, todas as manhãs passo protetor solar, pego o boné e os óculos escuros e vou andando até a praia. Mas um dos melhores momentos do meu ritual é observar, de longe, ao chegar à esquina da Figueiredo Magalhães com Domingos Ferreira, se ele está lá.

Sim, ele é o abridor das manhãs. O presidente do verão. Pelo menos, do meu verão. Não é o homem que traz o jornal, o moço da padaria que faz o sanduíche na chapa, o vendedor da barraquinha na areia ou o salva-vidas. Não é também uma deusa inebriante que passa com o corpo escultural e molhado... Não. Nada disso. Ele é um velho que às oito e meia da matina já está tomando uma cerveja acompanhada de um copo de conhaque. Todo santo dia sua cadeira está a postos. No bar que fica na quadra da Figueiredo Magalhães com a praia ele tem lugar cativo. Praticamente todos os dias ele está lá, na cadeira de plástico com um banquinho de madeira que botam na calçada em frente ao boteco. O bar em si não tem nada de mais, é um pé-sujo normal, com seus habitués, frequentadores ocasionais e seus bebuns com a validade vencida. Mas nenhum outro tem o lorde da boemia matinal.

A primeira vez em que o vi, estranhei a violência do teor alcoólico para a inocência infantil das primeiras horas do dia. Meu estômago se retorceu, meu fígado pediu de joelhos para não tentar copiar aquilo. No dia seguinte no mesmo horário, lá estava ele de novo, quieto, em silêncio, e com os mesmos fiéis companheiros: a garrafa e o copo de cerveja e o copo ordinário de conhaque pela metade à sua frente. E no outro dia, e no outro, e no outro... Com a repetição da cena, pude perceber que aquele pedaço da manhã naquele local e com aqueles apetrechos para ele é sagrado. Provavelmente ele, um senhor de seus setenta e poucos anos, passa o resto do dia aguardando chegar a sua hora de abrir a manhã e enfeitar o bar com a sua chapliniana figura. Porque ele não fala alto, não dá escândalo. Aliás, ele mal fala. Apenas fica ali, bebericando e observando as coisas em volta com olhos de um bichinho inofensivo e carente sob os óculos de grau.

A primeira vez em que não o vi, estranhei como se estranha a ausência de um parente querido numa festa familiar. Afinal, pude testemunhar seu comparecimento ao botequim de domingo a domingo por algumas semanas. E admirar seu comportamento majestoso e elegante de quem não está fazendo mal a ninguém, no máximo só a si mesmo. Ou seja, o bêbado ideal. Cheguei a elucubrar sobre sua vida: será que tem mulher, filhos, alguém? O certo é que dois dias depois de seu primeiro sumiço, ele voltou para abrir as manhãs, mas estava com alguns curativos pelo braço e pela perna. Comecei a reparar que estava me preocupando com um estranho como se ele fosse realmente importante para mim. Um estranho que deixou há muito de ser estranho, embora nunca tenha trocado uma palavra com ele.

Agora toda vez que chego à esquina e o vejo no bar já no batente sinto uma espécie de alívio. E quando acontece de me deparar com aquela cadeira desocupada, onde ninguém mais ousa sentar, minha mente divaga por questões sombrias: será que ele caiu em casa? Será que baixou no hospital? Será que o organismo não aguentou mais? Será...? Mas os dias de ausência, felizmente, são ainda em número bastante reduzido. Pelo menos por enquanto. Hoje ele estava lá, com os olhinhos curiosos, o jornal amassado embaixo do banco turbinado e mastigando a dentadura. E amanhã, será que ele vai?