sexta-feira, 18 de março de 2011

O Embaixador da Janela e Vovô Garoto

A SOMBRA DO FAQUIR 14



Para quem não sabe o Bairro Peixoto tem um embaixador. Ele costuma dar expediente em sua janela na entrada do pequeno oásis de Copacabana. Por lá passa todo santo dia uma multidão de pessoas que trabalha ali por perto, moradores, vendedores ambulantes, curiosos, desocupados. Porém não é raro ver alguém em pé na calçada olhando para cima e trocando sem pressa uma prosa com ele. Quando me mudei para cá logo percebi que se tratava de alguém que tinha o dom da conversa e de entreter interlocutores dos mais variados. Não imaginei na ocasião que eu também seria um desses.

O nosso embaixador não usa fraque nem pincenê. Provavelmente não domina outras línguas, e nem mesmo o idioma nacional com a perfeita fluência de um diplomata. Seu uniforme é um calção, sua fala é a das ruas. O embaixador boa praça é um autêntico vovô garoto. Surfista, alto, bonito, eternamente queimado de sol. (Poderia tranquilamente ter sido um famoso modelo internacional, mas sua filosofia zen não permitiria). Tem mais de 50 anos, mas aparenta sem nenhum favor 15 a menos (seu nível de estresse é abaixo de zero). Até onde se sabe tem um trabalho pra lá de vago de corretor de vendas. Ele próprio faz o seu horário e constrói sua agenda de acordo com o tamanho do mar. Porque se tiver dando onda ele certamente será encontrado na praia da Barra, do Recreio, da Macumba, da Prainha, ou mesmo do Leme. Jamais num escritório. Jamais.

Apesar de bastante cobiçado pelas atiradas neobalzaquianas de 40 e tantos anos da área e de outras regiões e idades também, ele tem namorada fixa, naturalmente uma bela mulher, bem mais jovem, evidentemente também surfista, e ainda skatista e dona de dois cachorros. Seu filho, em torno dos 20, mora com a ex-mulher e parece seu irmão mais novo. (Até poucos meses atrás o embaixador morava com a mãe, como autêntico vovô garoto; no entanto recentemente ela subiu de vez para o andar de cima). Há quem diga que o vovô viu a onda e também arranha alguma coisa no violão. Pode ser.

Outro dia, passava eu pela sua esquina e ele me cumprimenta: “Aí, tô gostando de ver!” É que, devido ao seu posto privilegiado, ele foi uma das principais testemunhas da minha virada rumo a uma vida mais saudável neste início de ano. Como uma espécie de retorno a uma época perdida no tempo em que fazia esporte com regularidade (embora não pareça, já joguei vôlei razoavelmente e corri até maratona), recomecei a acordar cedo e ir diariamente dar um mergulho no Arpoador. Com estes hábitos vieram também as corridinhas intercaladas com a caminhada e os exercícios a beira-mar. Voltei a me sentir muito bem disposto e até menos insatisfeito com o espelho. Como se fosse um autêntico vovô garoto.

Mas nesse dia em que o embaixador me cumprimentou, eu não estava nada bem. Depois de uma viagem de carnaval em que fiquei sentindo dores no joelho e até mancando, saí de casa para fazer uma ressonância magnética. O autêntico vovô garoto desdenhou: “Isso não é nada. Bota gelo que passa. Gelo é um remédio pra tudo. Às vezes estou aqui entrevado, doendo tudo abaixo do pescoço e boto gelo; às vezes até esqueço e durmo. No dia seguinte, faço manobras na prancha que nem eu acredito. Bota gelo, Mauro, vai por mim!”

Não tive nem coragem de dizer ao embaixador que me tornei tão alérgico, mas tão alérgico, que certas coisas me trazem problemas constrangedores. Gelo é uma delas. Beber gelado um suco ou um mate mesmo no verão se tornou proibitivo. Sorvete então nem pensar. Garganta muito sensível. (Mas paradoxalmente com álcool não; o chope, a cerveja ou a caipirinha descem bem, pois o álcool dá uma anestesiada, apesar da Sylvia não acreditar em nada disso e achar até hoje, depois de dez anos, que é uma desculpa absurdamente esfarrapada. Só eu que sei.). E esta restrição nos últimos tempos se estendeu até a passar o gelo numa contusão, digamos, no tornozelo. Depois de algumas horas, é dor de garganta na certa. Portanto, agradeci a dica e segui no meu andar capenga em direção ao laboratório para fazer o exame.

Três dias depois, o resultado inapelável: tive uma fratura na tíbia por estresse. Forcei muito a barra. Fui com muita sede ao pote. Além de não ter deixado um dia sequer para descanso desde que comecei a nova fase, não prestei a devida atenção aos evidentes sinais de desgaste excessivo do corpo. Quis recuperar a forma perdida com a ansiedade de um vovô garoto fake. E deu no que deu. Então aqui estou agora, de molho e olhando inconformado pro calendário, num repouso absoluto para que a fratura incompleta não vire total, com joelheira de neoprene e bengala de apoio. Mas, se tudo der certo, daqui a um mês e meio espero de novo poder cumprimentar cedinho o embaixador na janela.