terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Pequenas malandragens portenhas

A SOMBRA DO FAQUIR 9



Logo ao chegar no hotel, a agente de turismo nos aplica as palavras decoradas destinadas aos turistas marinheiros de primeira viagem. Algumas instrucciones. Ela também determina que faremos um city tour às nove da manhã no terceiro dia. Tento resistir, mas tudo certo, vou tentar não ser tão antipático com a Sylvia e o Júlio e acordar cedo. Para finalizar lamenta que por questões de segurança todo ir e vir deve ser feito com muitos cuidados e nos alerta para não dar mole com valores, evitar notas altas para troco e, principalmente, se for andar com mochila não colocá-la nas costas e sim na frente. Tal como recomendam no metrô daqui e quase ninguém faz.

Sentindo-me o sujeito malandro carioca, vivendo em plena guerra civil, acostumado com a nem sempre fácil convivência do morro com o asfalto, apenas sorrio e digo-lhe que, infelizmente, isso não é privilégio seu. A viagem então começa. Meu primeiro dia é para sentir a cidade, sentar numa esquina e ver a vida local em movimento. Depois, no primeiro jantar, na velha churrascaria onde bato ponto sempre que venho aqui, somos atendidos por um garçom com cara de Humprey Bogart, um pouco mais maltratado, gente finíssima, River Plate até a alma. Rango e atendimento excelentes. Fim de noite, depois de um abraço no Bogart, saímos para a rua e, num cruzamento, ouço um som bonito rolando na calçada e era uma música dos Beatles, tocada e cantada em inglês bem parecido, mas com estilo bacana. Fui dar uma checada e era um gordo muito branco, de bigodes e cego. Uma figura doce. Ficamos assistindo a uma sequência de três músicas da fase mais roqueira da banda. Finalizou com Crazy a little thing called love, do Queen. Júlio deixou nossa contribuição, dada com prazer.

Não vou contar todos os passos portenhos porque até o segundo dia tudo normal, com arte, música, ótima comida e relativamente bons preços. Mas no terceiro dia, o tal dia do passeio, num miniônibus com guia turístico espirituoso e turistas robotizados (mas que mesmo assim valeu a pena fazer – é bom para ter uma noção rudimentar do espaçamento geográfico da cidade, como num curso intensivo de algumas horas), no terceiro dia, não. Depois do passeio fomos dar uma caminhada que terminou pela rua Florida, a rua da brasileiros que vão furiosos às compras e dos chatos que oferecem insistentemente câmbio, casacos de couro e shows de tango. Pois eu, malandro que sou, desdenhador das recomendações, saí com a minha mochila na posição normal, nas costas. Ao voltar para o hotel, paramos num mercado perto para umas coisas básicas e ao pagar a conta dei por falta da minha carteira. Lembro-me que antes do mercado, eu passara numa loja de vinhos e ainda estava com a carteira. Portanto o furto tinha acontecido havia poucos instantes de quando me dei conta dele. Logicamente fiquei arrasado, me ver sem o dinheiro (a maior parte do pouco que tinha em espécie ficara no hotel) foi o de menos, mas sem os documentos e o cartão de crédito numa viagem é fatal.

Porém mal deu tempo de me considerar o último dos seres e compor um tango. Ao retornar ao hotel já havia um recado de que a carteira havia sido achada. Claro que sem o dinheiro, mas com todos os documentos, inclusive o cartão. Foi como se eu tivesse ganhado na loteria. O ladrão era só um punguista barato. Não quis (ou não sabia) fazer uso de um crédito virtual que certamente eu teria dificuldade para pagar. Ainda bem. Como diria a agente de viagens, dos males o menor.

Tive ainda mais exemplos da pequena falsa malandragem do ser humano. Como o do vendedor da lojinha do Malba, um belíssimo museu, que tentou esconder rápido na embalagem que a camisa com uma máquina de escrever feita com escritos de Jack Kerouac que adorei estava rasgada. Ou do taxista nazista (“Tem que jogar bomba na favela!”) que só revelou no meio do trajeto, como quem não quer nada, que o shopping onde iríamos assistir a um filme num dia de natal sem nada para fazer e com quase tudo fechado, esse shopping também estava fechado. Como se alguém pudesse pegar um táxi para um shopping e o fato de ele não estar aberto não ser muito importante.

Fui testemunha também do caso da falsa malandragem do brasileiro no exterior, que acha que só porque é da mesma nacionalidade da outra pessoa pode puxar papo com alguma intimidade e ser inconveniente até não poder mais. Foi o caso do sujeito que tivemos o desprazer de conhecer numa volta à velha churrascaria, no penúltimo dia da viagem. “Ei, ei... o quê que é bom aqui?” “Esse cardápio tinha que ter também em português, né, mas eles são metidos a ingleses!.” “Ô botafoguense... (para o Júlio, que estava com a camisa do alvinegro) que sobremesa é essa aí?” Como já tínhamos comido, era a hora de cair fora. Mas tive uma dúvida na conta e perguntei ao garçom. Depois de esclarecimento, enquanto me levantava, o sujeito, quase com prazer, ainda tentou: “Eles erraram a conta, é?” Devo dizer ainda que fomos com a expectativa de reencontrar o garçom simpatissíssimo e ele estava lá, mas dessa vez atendia do outro lado e mal nos deu uma olhada. (Para não ser injusto, no final ele sorriu para mim e acenou. Bogart era um tímido.)

Bem, no último dia de viagem eu fui à forra. Chegara então a minha vez. Eu havia comprado na véspera do Natal uma garrafa de Stella Artois grande que não foi consumida. Como obviamente não a levaria de volta para o Brasil e também não queria deixar para o hotel, retornei ao mercado dos chineses (o mesmo onde me dei conta do furto e onde havia comprado a cerveja) e propus trocar por uma razoável garrafa de vinho (que poderia trazer) pagando a diferença. Ao tentar explicar, em portunhol, aos dois chinas que me olhavam como se eu fosse um golpista, que ainda por cima eles não entendiam bem, que comprara lá mas não tinha mais a nota, Sylvia e Júlio se afastaram envergonhados. Um impasse no caixa e no balcão estava formado e tudo parou. A fila começou a ficar impaciente. Um cliente chegou a desistir e sair do mercado. O china chefe, percebendo que eu não iria arredar o pé enquanto não conseguisse efetuar o diabo da troca, jogou a toalha e, como quem enxota um vira-lata, topou só para se ver livre de mim. Mas saí da loja feliz da vida com o vinho branco na mão.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Quase tudo sobre minha mãe

DE BAR EM BAR – Real Chopp


Ela muitas vezes me pediu para ir comigo em uma das crônicas. Ao que eu sempre desconversei para evitar uma autêntica mamãezada. Mas eis que agora vai chegando o Natal, vou viajar e não a encontrarei mais esse ano, e eu, enfim, me rendo à mamãezada: chamo a própria para ir ao boteco. Aproveito e convido meus dois irmãos, Maurício e Marcelo, para aparecerem de surpresa no Real Chopp, em Copa, bairro onde nascemos e fomos criados. Pronto, o roteiro ideal para um vale de lágrimas.

O Real Chopp é um bar que vem sendo muito exaltado ultimamente. Confesso que ao passar pela Barata Ribeiro, de carro ou de ônibus, e vê-lo à esquerda, na esquina da Barata com a Paula Freitas, nunca dei muita bola, achava que era só um botequim normal, mais um, com suas cadeiras de plástico brancas na calçada e muita gente reunida nos dias de jogos de futebol. Eu estava redondamente enganado, amigo leitor. Não é. Os elogios à casa são mais do que merecidos.

Cheguei ao bar com minha mãe (nunca pensei que fosse escrever isso; é muito estranho) por volta das 16 h. Deu para escolher tranquilamente um bom lugar na calçada, na sombra, mais para o lado da Barata Ribeiro. O calor é intenso. Peço logo um chope. Minha mãe, ao contrário dos três filhos, não bebe, apenas em ocasiões solenes e mesmo assim só muito de vez em quando. Ela vai de guaraná. Pedimos também pastéis de camarão e siri. Os dois estavam ótimos, assim como o chope. A nota um pouco destoante foi o garçom, no início meio preguiçoso, meio antipático (chegou a apenas botar os pastéis na mesa e virar as costas, sem nem se dignar a explicar qual era qual). Mas levou logo uma chamada: “Amigo, vim aqui para consumir e ser feliz. Vamos fazer as coisas fluírem na boa?” Ficou tudo certo a partir de então.

Celina, empolgada com o encontro, não para de falar. Conta casos dos netos, fala dos problemas de família. Somos muito diferentes. Eu aprecio a arte do diálogo (e em alguns casos, até do monólogo) mas também dou muito valor ao silêncio. Eu e minha mãe já brigamos muito na vida. Temos os dois temperamento forte e formas de enxergar as coisas muitas vezes diametralmente opostas. Mas ainda assim, além do amor, tenho uma gratidão e uma admiração imensa por ela. Minha mãe é uma guerreira. Ficou viúva aos 27 anos (!) e com três filhos pequenos para criar. Detalhe: meu pai era 13 anos mais velho, mineiro e machista (como se costumava ser na época), e decidiu que ela, às vésperas de entrar na faculdade, se dedicaria apenas ao lar e aos filhos. Pois quando papai morreu (eu tinha apenas sete), ela teve que ir à luta: voltou a estudar, se formou, conseguiu arrumar um emprego, deu saúde e boa educação aos filhos, comprou até apartamento. Às vezes fico pensando se hoje em dia isto seria possível. Tivemos sorte, ainda bem, para contribuir com toda a determinação épica de Celina. Minha mãe é uma guerreira.

Pedimos em seguida uma porção de trilha à dorê. Veio absolutamente sensacional – sequinha, saborosa e farta. Outras opções do cardápio: polvo e bacalhau desfiados, bolinho de carne, casquinha de siri, pastel de lagosta, presunto de Parma, batata calabresa, sanduíches de pernil, salaminho e queijo Palmira, gurjão de frango, picanha na pedra, fritada de sardinha portuguesa, linguiça mineira e ovo de codorna. O bar começa a encher e, de repente, avisto meus dois irmãos atravessando a rua. Agora escurece e cai uma chuva fina (e o guardador de carros da região senta-se num toco de cimento da calçada e se refresca.)

Meu único receio ao promover a surpresa da reunião era ela ter um troço. Mas passamos com louvor dessa fase. Minha mãe, que foi uma mulher bem bonita quando nova, apesar de muito emotiva e uma certa hipocondria (da qual também não escapei), mantém-se firme e é hoje uma jovem senhora de 68 anos. Com a chegada dos irmãos, ela é instada a beber pelo menos um chope para brindarmos ao encontro. Os dois chegam com fome e, além dos mesmos pastéis iniciais, pedimos numa sequência uma porção de filé com fritas na chapa e depois de carne-seca com aipim. Realmente, Real Chopp, difícil dizer qual a melhor.

A essa altura, vários chopes consumidos (minha mãe ainda tomou um segundo, um chope escuro), entramos num assunto bastante delicado. Um dos meus irmãos enfrenta uma turbulência familiar (quem nunca viveu algo dessa natureza que atire a primeira pedra) e anda muito triste. Conversamos a respeito com a intenção de dar-lhe força e sugerir possíveis caminhos para resolver o impasse. Falamos de coisas difíceis de serem ditas com cuidado e a intimidade que só o amor permite. Afinal, é para isso também que a família serve. Foi um início de noite inesquecível, Real Chopp. Essa crônica é pra você, mãe. Saúde e até a próxima.

Real Chopp – Rua Barata Ribeiro 319, Copacabana (2547-6673)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

À prova de dissabores

DE BAR EM BAR – Caroline Café


O bar escolhido dessa vez foi um mero detalhe. Ao definir onde seria o encontro, quase fomos a uma (ótima) churrascaria por sugestão do meu convidado. Para não contrariá-lo, cheguei até a pensar numa categoria à parte para incluir a ida a uma churrascaria no De bar em bar, tal é a importância de meu personagem. Mas mudamos tudo na hora H, após assistirmos a um debate entre a professora e ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda e Armando Freitas Filho, um dos maiores poetas brasileiros vivos e (fato que desconhecia) um cara engraçadíssimo sob os holofotes, a propósito do lançamento de uma antologia do poeta, com a seleção de poemas feita por Heloísa. Comprei o meu exemplar no ato. E fomos então ao Caroline Café, ali perto do POP, local do debate.

Mas antes de falar do bar gostaria de dizer que, assim como Armando, o meu ilustre convidado, o filósofo, poeta e letrista Antonio Cicero, pode tranquilamente estar inscrito no mesmo rol de melhores poetas brasileiros vivos, apesar da obra relativamente curta até agora. É dele o extraordinário poema Guardar (“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / ...”), incluído, com todo o mérito, no livro Os cem melhores poemas brasileiros do século (XX), com a organização de Italo Moriconi.

Bem, vamos ao bar. Chegamos ao Caroline Cafe às 20h e o local estava tão vazio e escuro que chegamos a imaginar que estivesse fechado. Entre a simpática varanda e o salão interno refrigerado, preferimos este devido ao calor. (A casa tem também um segundo andar, onde costumam acontecer festas, som alto rolando etc). Pedimos logo dois chopes. Começamos conversando sobre o curso de Poesia e Letra de Música que Antonio Cicero havia finalizado na semana passada. Ele conta que gostou da turma e da experiência inédita, para ele, de ministrar esse curso. “Mas estou mais acostumado só com a poesia. Fiquei achando que faltou falar sobre muita coisa.” Eu, que já passei pela oportunidade de dar uma oficina também sobre os dois gêneros e como seu aluno no curso, diria que foi sensacional. Tanto que ao final da última aula, vários alunos, como a elegante cantora Katia B, pediram bis, e que as aulas continuassem. Cicero consegue ser ao mesmo tempo culto e simples, coisa das mais raras. Mas sabiamente desconversou e a vida seguiu em frente.

Enquanto pedimos para beliscar um tartar de salmão, falamos sobre o trabalho do compositor, ou seja, o nosso trabalho. Antonio Cicero é coautor de músicas como “À francesa”, “Fullgás”, “O último romântico” e “Para começar”; parceiro da irmã Marina, bem como de outros grandes nomes de nossa música, como Lulu Santos, Adriana Calcanhotto, João Bosco, o poeta Waly Salomão e o meu também parceiro Roberto Frejat (com quem tem a linda “Bagatelas”). Embora o papo fluísse redondo, o tartar de salmão veio mais ou menos. De certa forma foi uma surpresa porque das outras vezes que viera aqui tinha comido bem e a casa, apesar de estar bombando, tinha clima agradável. Até o chope, a uma determinada altura, parou de vir e o garçom que inicialmente nos informou que iriam trocar o barril depois nos disse que teríamos que escolher outra bebida. Mas a troca não se fez necessária, deram lá um jeito.

A casa oferece, além de um sushi bar, os seguintes petiscos: pastéis, mini burgers, nachos com cheddar, caldinhos de feijão e de bobó, carpaccios e tacos crocantes. Em relação aos pratos de “cozinha contemporânea”, pode-se optar entre steak de atum, frango ao limão, ravióli Chanel e camarão à Cocchin (camarão ao molho de lassi – leite de coco, gengibre e masala – servido com arroz basmati). E há ainda os sanduíches: Texas burger, Baby burger, Baby chicken burguer, e Mushroom jazz (cogumelos frescos e gorgonzola no pão francês com batata frita e saladinha). Entre as bebidas, além do chope, drinques e coquetéis variados, uísque, aperitivos como absinto, saquê, tequila, vinhos e uma boa quantidade de marcas de cerveja nacionais e importadas.

Voltando ao papo sobre música, eu e Cicero lamentamos que com a revolução da música digital, a crise do mercado fonográfico, a pirataria, os downloads gratuitos e a morte anunciada do CD, a remuneração do compositor no Brasil, especialmente daquele que não é também cantor, não faz show, tenha caído tão drasticamente. A ponto de tornar hoje quase inviável uma profissão que até muito pouco tempo era remunerada com dignidade, na medida da importância que a música exerce na vida das pessoas (principalmente do povo brasileiro, essencialmente musical). Pergunto-lhe se tem esperanças de que nosso trabalho volte a ser valorizado financeiramente como na época em que se vendiam discos. “Sim, mas é preciso que se criem mecanismos para que as pessoas paguem as músicas que baixarem. Acho que isso é possível. Temos que nos mobilizar.” Concordo, e uma hora o mercado vai ter que se ajustar aos novos tempos – só espero que ainda estejamos vivos.

Conversamos também sobre Caetano, Chico Buarque e Noel Rosa, a parceria com o elétrico Waly, blogs, Barra da Tijuca, tradução de poesia e um artigo brilhante do médico Drauzio Varella, “Violência contra homossexuais” (que deveria ser lido nas escolas). O bar já tinha um outro movimento, mas mesmo assim longe daquele que presenciei noutras vindas. Fiquei até na dúvida se os cariocas estão ainda ressabiados, na ressaca dos últimos acontecimentos da nossa guerra civil cotidiana. Para acompanhar o chope de saideira, pedimos dois sanduíches Caroline burger (contrafilé grelhado, mussarela, alface, tomate, cebola e fritas). Mais uma vez, não foi grande coisa. É pena, pois, como disse, tinha boas recordações desse bar com personalidade própria. Mas às vezes tem a questão do dia também. O encontro bacana com Antonio Cicero, no entanto, valeu por qualquer dissabor. Tá tudo certo. Saúde e até a próxima.

Caroline Café – Rua J.J. Seabra, 10, Jardim Botânico (2540-0705)