sexta-feira, 28 de maio de 2010

Aquele bolinho transcendente

DE BAR EM BAR - Bacalhau do Rei

Fui esta semana a uma casa especializada na culinária portuguesa, mistura de bar e restaurante e que cumpre muito bem os dois papéis: o Bacalhau do Rei, ali no começo da Marquês de São Vicente. Endereço ideal para o amigo leitor comer um transcendente bolinho de bacalhau, mas que com certeza não se esgota nisso.

Sento-me na varanda, de frente para a rua bastante movimentada do início de noite. Observo com algum espanto, no lado oposto ao Bacalhau do Rei, os tapumes de uma obra que varreu alguns estabelecimentos tradicionais da área: barbearia, chaveiro, papelaria e correio. Isso para a construção, ao que tudo indica, de mais um prédio gigantesco em nossa cidade. Ó céus.

Peço uma cerveja ao garçom, que me informa que as marcas disponíveis são Original e Bohemia, mas ao conferir o cardápio, um pouco depois, fico sabendo que eles também têm a ótima e difícil de encontrar Serra Malte. (E que assim se torna mais difícil ainda.) Mas vem uma Original bem gelada, perfeita para acompanhar a excelente porção de jiló grelhado, crocante e com o amargor na medida certa.

Falando em medida certa, penso no meu filho Júlio, que vai mal no colégio, e me ponho a refletir sobre como estimulá-lo a estudar Química, Matemática e Física, que ele tanto odeia (como de resto a maioria dos adolescentes – à qual não fui exceção). Qual a medida certa entre a bronca e o carinho para que a coisa não desande de vez? Bem, deixo momentaneamente esta questão de lado e me ponho a estudar o cardápio para uma nova pedida.

As opções de tira-gosto são variadas: além do jiló, o Bacalhau do Rei oferece abobrinha à doré, gurjão de peixe, escondidinho, risole de camarão, patanisca, espetinho misto, carne seca com aipim e queijo derretido, caldinhos e, naturalmente, o bolinho de bacalhau. Peço um caldinho de frutos do mar e mais uma cerveja, agora a dificultosa Serra Malte. O caldinho vem surpreendentemente leve e muito saboroso e a cerveja compensa a minha insistência.

Em relação aos pratos, é preciso dedicar uma atenção especial ao carro-chefe da casa: há bacalhau assado de Lisboa, grelhado à Alentejano, do Porto ao Rei, à portuguesa, à espanhola, à moda, à Zé do Pipo, ao forno, à Narcisa, à Lagareira, risoto e salada de Bacalhau Imperial, entre outras possibilidades que dão água na boca e enchem uma página inteira do cardápio. (Mas dignos de registro são também o bobó de camarão, lula com arroz de brocólis, estrogonofe de filé e medalhão à piamontesa.)

Enquanto provo, enfim, o maravilhoso bolinho de bacalhau, reparo nas pessoas ao redor. Na mesa de trás, são quatro amigas numa comemoração; na frente há três tipos de solitários: um rapaz moderno, um senhor com pinta de aposentado e outro com ares de artista. Quando ia pedir a conta, eis que surgem na rua meu irmão Marcelo, sua mulher Cliva e meu sobrinho e afilhado Leonardo (como eu, um apaixonado pela leitura). Eles vêm se sentar comigo. Tive então, em nome da família, de recomeçar os trabalhos – o que não foi exatamente um sacrifício. Saúde e até a próxima.

Bacalhau do Rei – Rua Marquês de São Vicente, 11, Gávea (2239-8945)

sábado, 22 de maio de 2010

Concisão maravilhosa

Texto de apenas uma frase, talvez o menor conto do mundo:

"Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá."

(Augusto Monterroso, escritor guatemalteco, O dinossauro)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Abençoai-nos, Buda sambista

DE BAR EM BAR - Picote

Eis um bar com um nome muito legal. Ainda que aparentemente nada tenha a ver com a atividade etílica (aos leitores que porventura vierem a me corrigir, por favor, sem agressões...). Mas isso, claro, não tem a menor importância. “Vamos ao Picote?” “Ontem dei uma passadinha rápida no Picote...” Pois bem, funcionando desde 1959 no coração do Flamengo, esse é o bar da semana.

Chego ao botequim naquele horário em que a estação do metrô, quase em frente, está fervilhando no lusco-fusco. Sento-me numa das mesinhas de alumínio na calçada. Peço o primeiro chope e fico feliz de constatar que veio na pressão ideal, sem ter sido necessária qualquer recomendação ao garçom. O que me faz crer que o letreiro “O melhor chope do bairro”, na pior das hipóteses, não é nenhuma heresia.

Com alguma fome, dou uma conferida no cardápio e, mais do que isso, reparo no movimento das bandejas. Escolho o campeão na preferência popular (pelo menos na ocasião): o bolinho de bacalhau. Estava tão gostoso que peço outro. Mas este segundo não vem tão bom, bem de acordo com a teoria dos petiscos que o escritor Dalton Trevisan expôs em seu livro Dinorá:

“– Já reparei, garçom: a segunda empadinha nunca é tão boa quanto a primeira.
– ...
– Hoje você me traga a segunda antes da primeira.”

Outros tira-gostos da casa: camarão empanado, quibe, bolinho de aipim, sardinha, polvo ou lula a vinagrete, pastéis, porções de provolone, filé mignon e lombinho. Tem também os pratos: milanesa com arroz e purê, polvo com arroz e brócolis, risotos de camarão, bacalhau ou frango, filé com arroz à grega e carré com arroz e fritas.

Olhando em volta, há uma mulher que faz palavras cruzadas como se não houvesse amanhã (fala sozinha, se irrita, comemora); perto dela, um senhor no celular se estressa tremendamente (“Eu não acredito em você, nem no seu advogado!” “Você não tem autoridade nem moral pra definir isso!”). Mas, felizmente, nem tudo são espinhos: a verdadeira boa figura do boteco, aquele que vale a pena descrever, estava numa mesa na parte interna.

Peço mais um chope, acompanhado de uma ótima sardinha frita, e o observo atentamente. Ele está de camiseta, bermuda, chinelos e vários colares no pescoço. Em geral, ninguém gosta de ser assemelhado com outra pessoa, é verdade, mas só para você entender, amigo leitor, ele é fisicamente um mix de Moacyr Luz e o compositor Paulo César Pinheiro. Com toda a serenidade de um Buda carioca, beberica seu chope e um drinque destilado.

Todos o cumprimentam. Mesmo os ambulantes param para tomar a benção. E ele apenas sorri. Até que se senta ao seu lado um senhor quase tão personagem quanto: cabelos longos, gravata vermelha, camisa social, calça e sapatos brancos. Pede uma caracu e duas empadas. Os dois ficam um tempão sem nenhum contato, mas o senhorzinho não se aguenta e puxa conversa. O Buda sambista, perfeito cavalheiro, retribui, mas parece aliviado quando volta a ficar sozinho. Sem dúvida, o cara é bacana – assim como esse bar de belo nome. Saúde e até a próxima.

Picote – Rua Marquês de Paraná, 128, Flamengo (2552-1799)

sábado, 8 de maio de 2010

A história de cada um

“A arte, disse, é parte da história particular muito mais do que a história da arte propriamente dita. A arte, disse, é a história particular. É a única história particular possível. É a história particular e ao mesmo tempo a matriz da história particular. E o que é a matriz da história particular?, perguntei. Ato contínuo pensei que me responderia: a arte. Também pensei, e esse foi um pensamento afável, que já estávamos bêbados e que era hora de voltar para casa. Mas meu amigo falou: a matriz da história particular é a história secreta.”

(Roberto Bolaño, Dentista, in: Putas assassinas)