sexta-feira, 31 de julho de 2009

No pé limpo, suco de melão

DE BAR EM BAR - Odorico


“O mundo é recheado de queijo”, me revela a escritora Ana Paula Maia, lendo o cardápio. Combinamos outro dia de ir a um bar em Botafogo. Levei-a primeiro num pé-sujo disfarçado, perto da área dos cinemas. Ela reclamou: “Passei minha vida toda nessa, não preciso mais.” Note-se que ela tem só 31 anos, e é considerada uma revelação das letras nacionais. Alguém já disse que é uma mulher que escreve como homem. Uma bobagem. O que sei é que Ana Paula Maia saiu de Nova Iguaçu para inscrever seu nome na literatura brasileira. E que agora estamos aqui, no Odorico.

O bar, cujo símbolo é o desenho de um homem parecidíssimo com Barack Obama (quem será, meu Deus?), tem um salão e uma área externa com mesinhas e cadeiras dobráveis de madeira. Apesar do calor atípico para esta época, preferimos a parte interna, o salão iluminado, mesa na lateral, boa vista do bar. Chegamos um pouco antes do movimento de pessoas rumo à lotação da casa. Passo os olhos pelas caras, muitas delas saídas agora do trabalho, Mas, na verdade, hoje o que interessa é esse papo com a amiga escritora, minha personagem da vez. Como temos fome, pedimos logo uma porção de croquetes de carne do tipo alemão. Eu tomo um chope, Ana um Ice-T (ela só bebe saquê – e muito esporadicamente).

Além de falar de filmes e livros, conversamos também sobre outras coisas familiares, como a hipocondria nossa de cada dia, sustentada por uma farmácia em cada esquina, e os trajes quando se trabalha em casa – alguns bizarros (estes só meus; atualmente ela se veste como se fosse trabalhar fora). Ana Paula Maia tem cara de brasileira. Bocão, cabelo encaracolado, pele da cor tropical, magra – depois que parou de consumir leite e derivados por alergia tem pesado 51 quilos. Mas é uma voraz consumidora e crítica do mundo pop. Suas admirações passam por The Kills, Johnny Cash, Chingon (guitarrista mexicano), Quentin Tarantino, novela das oito, Lost, Law & Order, John Fante, Steinbeck e Campos de Carvalho. Acaba de lançar seu terceiro livro, Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, por uma editora top. E trocou a noite de autógrafos por um trailer do livro no cinema, narrado pelo Peréio. Bravo, Ana!

Peço aos solícitos garçons de novo o cardápio, mais um chope e para ela um suco de melão. O Odorico faz a linha do pé-limpo ajeitado. Tem como especialidades pratos como a picanha nobre na chapa e “costeletas Primo Basílio”. Oferece também escondidinhos e caldinhos, moela, nachos mexicanos, chips de berinjela, carne seca com farofa, sanduíches e sopas. Pedimos iscas de filé mignon e uma porção de batatas fritas. Vieram corretas, assim como os croquetes, anteriormente. Se não chegaram a emocionar, também não fizeram feio.

Por falar nisso, ciente de sua condição, ao discorrer sobre uma adversária em potencial numa atitude bastante reprovável, ela dispara: “mulher feia é f...!” Mas o faz com absoluta graça e hilaridade. É uma menina desabusada. Ana Paula Maia não está para brincadeira. Ela sabe o que quer e vai chegar lá. Saúde e até a próxima.

Odorico Bar – Rua Voluntários da Pátria, 31C-D, Botafogo, (2266-3773)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A nissei, a gordinha e a mulata

DE BAR EM BAR - Antigamente


Fui tarde dessas ao Centro com a intenção de ver a exposição de arte russa do início do século passado e depois mergulhar no bar. Mas como me atrasei bastante, a exposição, que é imperdível, teve de ficar para uma outra ocasião. Rumei então, com alguma culpa, para o bar Antigamente, ali na rua do Ouvidor. Mas só até o primeiro chope. (Até porque não existe a menor possibilidade de eu perder novamente a visita às obras revolucionárias dos grandes pintores russos). É a tal história: não vi, mas recomendo sem medo de errar, com total fervor dostoievskiano.

Entro no boteco pé-limpo e ele ainda está meio vazio. Lá fora, as mesinhas de madeira começam a ser dispostas no trecho de pedestres da rua centenária, à espera dos fregueses que ao sair do trabalho irão lotar o bar a céu aberto. Aliás, faz um belo início de noite. Na parte interna do bar, sento-me no canto à esquerda, na mesa perto da enorme TV. Como estou quase abaixo do aparelho, apenas ouço o excelente sambista Arlindo Cruz. Peço o primeiro chope e um pastel de costela (iguaria que parece ser a bola da vez na chamada baixa gastronomia. Ainda bem. Uma costela tenra é coisa de outro planeta). Veio ótimo o pastel, sequinho, com recheio farto e carne macia.

O Antigamente tem pratos como o bom filé de linguado com batatas, o polvo à provençal e a carne assada com talharim. Mas a grande saída são os petiscos: pastéis, frango à passarinho, tortillas, carne-seca com aipim, gurjão de badejo. Como tenho fome, peço mais um acepipe: meia porção de bolinhos de bacalhau. Tudo ok. Chamam-me a atenção dois cidadãos em mesas separadas. Um dos homens toma cerveja e lê calmamente o Diário Oficial. O outro, também bebendo cerveja, fala sobriamente ao celular. Naquele exato momento, o clima mudou. O bar repentinamente começou a encher. Os dois solitários à minha frente, assim como eu, fomos rapidamente levados a um mundo de alegria (fim do expediente!) e muitas risadas em volta.

Eis que entram três amigas e sentam-se próximo à minha mesa. Uma delas era uma nissei de óculos e sorriso tímido, outra uma morena gorda e, por fim, uma escultural mulata. Trabalham na mesma empresa, ou firma, sei lá. A japeta de óculos toma um mate, a gordinha uma cerveja sem álcool e a mulata uma caipivodca de limão. Riem muito, a malícia rola solta sem homem reprimindo. Mulheres sozinhas riem muito – e dizem tudo aquilo que talvez não gostássemos de ouvir.

- Mas se eu falar isso, ele vai se achar importante... – contorceu-se a gordinha.

- E se acontecer um milagre?! – interrompeu toda esperançosa a japinha.

- Que situação... – disse a mulata.

- Safada! Filha da mãe! – Não se aguentou a gordinha.

- Você falou isso? Você está namorando quem? – resumiu com sabedoria a mulata cavala.

E o Arlindão no DVD: “Madureira lá lá lá iá...” A mulata era nota dez. Senti vontade de escrever na toalha de mesa uma letra de samba. Título: Mulata cavala. Que me perdoe mestre Aurélio. Que me perdoe Machado. Drummond... Mas a moça era realmente uma mulata cavala. Saúde e até a próxima.

Antigamente – Rua do Ouvidor, 43, Centro (2507-5040)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Carnavalizaram o botequim

DE BAR EM BAR - Garrafeiro Informal


- Você tá maluco, rapaz?!

Virei-me de leve para olhar.

- Onde já se viu uma coisa dessas! – continuou em sua estupefação o homem pálido com cara de fuinha, de camisa e calça sociais e cabelo impecavelmente repartido do lado.

Uma trama eclodiu mal cheguei ao Garrafeiro Informal (naquela rua em que muitas vezes cruzara de passagem, vindo do ônibus, para ir ao Piraquê jogar voleibol. Bons tempos). Por indicação de meu amigo Humberto Effe, que mora ali perto, fui conferir o relativamente novo bar da rede Informal, cuja filial do Jardim Botânico que lá existia entrou em obras e pouco depois virou Garrafeiro Informal. Como o nome modificado propõe, um bar dedicado às cervejas de garrafa – são mais de 20 rótulos.

Logo ao adentrar o boteco se percebe a intenção em dar um ar diferente em relação ao formato da bem sucedida rede de bares (que muito já frequentei, aliás). Há trechos de dizeres na estética do Profeta Gentileza, engradados de cerveja cenograficamente dispostos no salão, canecas no teto, um imenso São Jorge. Nas paredes azulejadas em branco e azul, pôsteres de algumas cervejas e prateleiras com inúmeras garrafas expostas. Se me pedissem uma interpretação pseudointelectualizada, arriscaria afirmar que rolou certa carnavalização do botequim, mas já que a decoração é assinada justamente por um carnavalesco, Mario Boriello, diria, como Benito di Paula, que “tudo está no seu lugar, graças a Deus”.

Peço uma cerveja Serra Malte ao garçom, mas logo aparece o gerente, que educadamente me explica que ainda não está bem gelada. Peço então uma Original e um balde com gelo com outras duas garrafas da minha escolha inicial. Eis que vejo passando na rua justamente o cantor e compositor Humberto Effe. Tinha ido dar uma corrida na Lagoa. Ele, que é da minha geração e também parceiro em duas ou três canções de que gosto muito, corre invejáveis nove quilômetros como se estivesse a passeio. Quando me vê, relaxando na varanda e tomando uma cervejinha, diz que está “com inveja”. Já eu penso com um travo de melancolia que a época em que cheguei a correr uma maratona está no museu das minhas memórias.

Humberto se despede e vai para casa. Ele será pai pela segunda vez e a sua mulher Tininha está grávida de primeira viagem. Sinto fome e peço um miniescondidinho de camarão, que vem excelente. É um dos pratos exclusivos do cardápio Garrafeiro (assim como o arroz com camarão, o espaguete com carne assada e o picadinho de carne). Estava tão bom que pedi em seguida uma porção de camarões empanados. Também muito boa.

O leitor a esta altura deve estar se perguntando: e a história do começo da coluna? Não esqueci, não. Guardei-a para o final. Aconteceu o seguinte: o homem pálido ficou indignado com o amigo porque este não via problema nenhum na própria mulher viajar de férias com o ex-marido e o filho adolescente dos dois. E ele, o amigo, enquanto isso, ficará no apartamento do tal ex-marido. Entendeu? São as múltiplas configurações da família nos dias de hoje. Saúde e até a próxima.

Garrafeiro Informal – Rua Saturnino de Brito, 64, Jardim Botânico (3874-0016)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Feijão ou galinha à cabidela?

DE BAR EM BAR - Bar do Mineiro


Numa tarde dessas, de frio e azul intensos, peguei o bondinho e fui ao Bar do Mineiro, em Santa Teresa. Ao chegar lá, o espanto: estava plenamente cheio às 16:30 de uma quarta-feira. Mesas com a rapaziada local, gringos ali e acolá, uma equipe de produção de uma filmagem, várias meninas bonitas. O bar, cuja frequência no fim de semana é enorme (e a espera, inevitável), tem a cara de um dos bairros mais simples e charmosos do Rio de Janeiro.

As paredes são azulejadas em branco com diversas informações visuais. Quer ver? Cartazes de cursos e shows, matérias de jornal, pôsteres de filmes, fotos de estrelas da MPB, bondinhos, grandes panelas, quadros de pintura naif e, em destaque absoluto, no final do salão, uma placa vermelha do tipo “Pare”, mas escrito no lugar “PIRE” . Como nunca se sabe, para garantir, sob o balcão há imagens de variados santos. Numa prateleira, títeres de Gilberto Gil, Bob Marley, Cartola, Hendrix, Elvis, Carmem Miranda, Piaf. E nas prateleiras ao redor, naturalmente, as cachaças, um elogiável estoque delas. O Mineiro vai para o trono ou não vai?

Sim, e ainda tem a comida. O carro-chefe é a feijoada – prato dividido pela morena de olhos azuis com mais duas amigas igualmente belas. O cardápio apresenta também feijão tropeiro, tutu à mineira, rabada, frango com quiabo e polenta, leitão à pururuca, fígado acebolado. E para estômagos mais sensíveis, o prato “Mineiro light”. Mas hoje já almocei. Peço apenas uma cerveja Original e uma porção de pastéis de galinha à cabidela. Vieram sensacionais, sequinhos, deliciosos. É a mais nova invenção do bar e por mim terá vida duradoura.

Subitamente, toca o celular. Fico sabendo que meus amigos, o roteirista Péricles Barros e o artista plástico Raul Mourão, infelizmente não poderão vir mais. Péricles, o Pequinho, me liga para dizer que imprevistos rolaram. Ok. Isso acontece. (O Raul Mourão, de alguma forma, é que está presente: seu nome está escrito em azul numa das paredes.) Por sorte, o bar é divertido. E a observação ao que se passa no ambiente torna-se mais aguda. Ou, talvez, mais voyeurística. As meninas da feijoada já terminaram, agora contam casos e tomam uma cerveja. Há uma mesa de argentinos comendo arroz carreteiro e, estranhamente, falando baixo – será efeito da seleção do Maradona?

Eis que chega o meu consultor para bares no Centro e arredores, Marcos André, o vulgo Dudu, acompanhado da mulher Moema e do pequeno Vítor. Aos seis anos, o moleque parece que tem oito ou nove. Com a agitação característica da idade, ele dispara pelo bar. Moema tenta lhe oferecer um pastel, mas ele quer chiclete. Mesmo assim, pedimos uma porção dos famosos pastéis de feijão. Eu e Dudu tomamos uma cachacinha Previdência. Meu amigo, com um orgulho transatlântico, diz que o filho é fã de Tim Maia. “Como é que é, Vítor, a música de que você gosta?... Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher...” Ao que o pequeno completa, com um sorriso esperto: “... O resto vale!” Esse garoto vai longe. Saúde e até a próxima.


Bar do Mineiro – Rua Pascoal Carlos Magno, 99, SantaTeresa (2221-9227)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Noel e Cartola dão a bênção

DE BAR EM BAR - Beco do Rato


Nas paredes de azulejos em preto e branco estão os bambas eternizados em tinta a óleo abençoando a casa. Pixinguinha, Noel Rosa e Cartola de um lado. Beth Carvalho, Walter Alfaiate, Dona Ivone Lara e João Nogueira de outro. No cardápio, preciosidades como caldos de ervilha, mocotó e feijão; sanduíches de calabresa e pernil com abacaxi; jiló, moela, maxixe e quiabo. E o famoso pastel de angu. Estou falando do Beco do Rato, bar que não poderia estar em outro local que não a Lapa (e fica numa rua nas entranhas do início do bairro – se é que isso é possível).

Fui lá uma noite dessas. A chegada é como que uma inspiração. Na confluência de ruas outrora perigosas, o bar resplandece no escuro. O público era, curiosamente, bem eclético: duplas de amigos, pessoal do trabalho, uma família inteira com as crianças correndo pelo salão, casais e uma mesa com três meninas lindas. O astral é alto. Peço uma cervejinha e infelizmente não tem nem Original, nem a ótima Serra Malte; já acabaram, como me explicam os solícitos garçons. Vou então de Antarctica, que chega geladíssima. Para acompanhar, um dos carros-chefes: o pastel de angu – que é realmente tudo aquilo que dele comentam.

Muito frequentado pela rapaziada do samba, não é raro esbarrar por aqui com Moacyr Luz, Paulão Sete Cordas e Marquinhos PQD, entre outros grandes nomes do gênero. Situado exatamente na mesma área em que moraram Chiquinha Gonzaga e Madame Satã (e por onde também circularam Manuel Bandeira, Portinari, Sinhô e o já citado Noel), o Beco do Rato respira música. E tem, com efeito, bons shows que se revezam durante a semana, com o próprio grupo da casa, o Grupo do Beco, com o conjunto Receita de Choro e com o Samba Di Beco (este com direito a apresentação e versos de improviso de Fábio Bananada).

Fico sabendo que recentemente, no dia de São Jorge, o bar ofereceu feijoada de graça aos moradores de rua. Passo a gostar mais ainda do local. Até que apareceu o Márcio Pacheco, dono do Beco do Rato. Com sua fala macia de bom malandro e uma leve semelhança com o ex-jogador de futebol Paulo César Caju, Márcio sentou-se à mesa, dissertou com indisfarçável orgulho sobre seus músicos e em pouquíssimo tempo tornou-se um velho amigo. Trouxe até a sua cachacinha Germana de estimação, que segundo ele não faz mal nenhum e “não dá nada”. Sei. (Aliás, o meu dia seguinte é que sabe). Para garantir ainda um resto de sobriedade, peço o intrigante escondidinho de jiló com linguiça mineira, novo petisco do Beco e um dos concorrentes do Festival Comida Di Buteco.

Por fim, faltou falar de uma característica muito particular do Beco do Rato. Trata-se de um bar que não abre aos sábados. Sim, é isso mesmo, caro leitor. Talvez seja o único no mundo. Diversos botecos não funcionam às segundas-feiras. Conheço até quem não abra aos domingos. Mas aos sábados? Tinha tudo para dar errado. O bar, porém, é um sucesso. Pela ousadia, pela criatividade e pelos banheiros limpos e cheirosos como bumbum de bebê, palmas para o Beco que ele merece. Saúde e até a próxima.

Beco do Rato – Rua Joaquim Silva, 11, Lapa (2508-5600)