quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

No estúdio

Gravando meu próprio disco (produzido por Rodrigo Santos, do Barão Vermelho), com o auxílio de grandes músicos e amigos. Aqui com Júlio Santa Cecília, que tocou guitarra em duas faixas. Felicidade é isso aí.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Tristeza botafoguense

(A SOMBRA DO FAQUIR 20)




         Ando meio sumido deste espaço, mas por um motivo até certo ponto nobre: o de remar contra a corrente, num momento de crise do mercado fonográfico em que não se vendem mais discos. Estou nesse momento em estúdio gravando um CD meu, autoral. Depois de quase 15 anos como letrista, resolvi me arriscar a (tentar) cantar e cometer minhas próprias interpretações de minhas músicas, sempre compostas com um ou mais parceiros que são músicos e entendem do riscado. A produção é do Rodrigo Santos, baixista do Barão, meu parceiro e grande amigo.

         Por conta desse trabalho, não tenho conseguido escrever nem ler nada. Costumo ler alguns livros ao mesmo tempo, mas nem jornal está rolando (fico sabendo das coisas vez ou outra pela tevê), exceção feita à parte dos esportes. Mais especificamente, à cobertura do meu Botafogo, que vasculho, em qualquer brecha, até na internet. Não que fique internado 24h dentro do estúdio, mas para botar o projeto em pé é preciso estar envolvido completamente, ainda mais que o meu produtor anda às voltas com mil e uma atividades. Felizmente ele sabe o que faz e está sendo uma grande experiência entender como se constroem as canções, instrumento a instrumento, com o auxílio luxuoso do co-produtor Cezar Delano e a estrutura de minha editora musical, gerenciada pelo vascaíno Décio Cruz.

         O motivo de eu ter aberto uma exceção e voltado aqui antes de finalizar as gravações foi a profunda tristeza que se abateu sobre mim com o descaminho de meu time de coração. A menos que exista Papai Noel, o ano acabou ontem para o Botafogo. Depois de perder do Internacional em casa, somando a quarta derrota consecutiva, o Botafogo deixou escapar uma situação em que tinha boas chances de título e 86% de probabilidade de estar na Libertadores em 2012. O clube conseguiu montar um bom time, bem melhor do que em anos anteriores, tem uma estrutura razoável para os times cariocas, paga salário em dia, e chegou a fazer algumas apresentações bastante convincentes, como ao ganhar de 4 a 0 do Vasco no primeiro turno do Brasileiro e de 2 a 0 do Corinthians no segundo turno, não por acaso os dois times favoritos para ganhar a competição.

         Mas há uma frase que em momentos como esse ronda a cabeça de todos os alvinegros – e também daqueles que aproveitam a ocasião para dar uma tripudiada na gente. “Há coisas que só acontecem ao Botafogo”. Como é que estando em terceiro lugar, jogando bem, com um elenco mesclado de jogadores experientes e de nível de Seleção, como Jéferson, Renato e o ídolo Loco Abreu, e algumas revelações como Elkeson e Cortês, o time se descontrolou e desceu ladeira abaixo? Como é que o clube foi demitir o técnico Caio Júnior faltando três jogos para o fim do certame? Por que a torcida nutria profunda antipatia pelo técnico que pôs o Botafogo novamente para jogar para a frente, com um estilo de jogo que certamente era mais agradável de se ver do que a eterna retranca do mestre Papai Joel Santana?

         Mais do que procurar respostas ou possíveis culpados, acho que o mais importante agora é continuar o trabalho sério de aparelhar o clube, valorizar as categorias de base, manter a parte do time que deu certo, fazer contratações pontuais (inclusive de um novo técnico para funcionar a longo prazo), e acima de tudo entender que o Botafogo é maior do que churumelas, chororôs e superstições. Para voltar um dia a ser o Glorioso que sempre foi. 

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Tudo é pequeno

Tudo é pequeno
A fama
A lama
O lince hipnotizando a iguana

O que é grande
É a arte
Há vida em marte

(Rodrigo de Souza Leão)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A água e o vinho

“A finança se assemelha à poesia, naquilo de requerer e exigir doador e recebedor a fim de perdurar; cantor e ouvinte, banqueiro e tomador de empréstimo, comprador e vendedor, cada qual com sua ética própria, ambos insuspeitáveis, ambos imaculados no seu devotamento e sua fé.”
(William Faulkner, Uma fábula)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

COMMUNICATION BREAKDOWN




Preciso agora reinventar
                                    o cotidiano
Meu plano B foi para o espaço
                                   (plano foi feito para não dar certo)
Agora sinto a coceira
do fracasso
            rondar a sombra
                        do que já fui (antes desse verso)
Preciso não precisar agora
                                   me perder de novo com o inalcançável
                        para florir o instante inflexível
Preciso agora apenas reinventar
            o que não é preciso

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sobre nós 2 e o resto do mundo

(Conto inspirado na música homônima, de Frejat, Maurício Barros e Mauro Sta. Cecília)

         Marcelo olha para o relógio e tem um pequeno sobressalto com o toque do celular quase ao mesmo tempo. Quem seria justo agora? Pelo bina viu que era Fred. Agora não. Deixou cair na secretária eletrônica. Desviou-se da cama em seu quarto apertado e ligou o computador. Em seguida tocou o celular mais uma vez. Era Fred de novo. Marcelo, com impaciência, atendeu e andou até a mínima sala do conjugado dividido em dois ambientes. “Fala, cara.”

         – Deixei um recado pra você... Temos uma noitada pela frente!

         – Hoje não vai dar.

– Que foi, está me dispensando?

– Não, não é isso...

– Rapaz, hoje é terça-feira! Dia perfeito pra cair na night.

– Vou ter uma reunião importantíssima amanhã.

– Que papo de reunião o quê! Pra cima de mim? Deve estar aprontando alguma coisa.

– Que nada. Estou devagar quase parando.

– Já vi tudo. Teve uma recaída da Bruna.

– Não. Ela nunca mais.

– Vai me dizer que é aquela mulher da internet?

         – É.. quer dizer não. Ainda não. É que está quase na hora...

         – Não acredito que você está perdendo seu tempo com...

– Por favor, Fred, sermão não.

         – Isso não existe, rapaz! Essa mulher deve ser de mentira.

– Ok. Eu já estou bem crescido.

– Então vamos, seu Mané. Um pit-stop antes na casa do Paulão. A namorada dele vai levar umas amigas. Depois a gente sai pra algum lugar.

– Fica pra próxima, Fred. Hoje não estou a fim.

– Então, tá, Marcelo...  Tá muito baixo astral, hein! Fica curtindo a sua solidão e depois eu te falo da gata maravilhosa que eu vou pegar.

Janice está sentada no sofá com a tevê ligada e o laptop em seu colo. Olha para o relógio e em seguida nota o recebimento de uma mensagem no Facebook. É sua amiga Ana. Olha de novo para o relógio de pulso e parece ansiosa, mas não resiste à curiosidade de ver a mensagem. “Você vai ao jantar da Flávia?” Ela solta um muxoxo e faz uma cara de quem havia se esquecido completamente. Olha mais uma vez o relógio e resolve escrever logo uma resposta. “Ana, não sei se vou poder ir ao jantar hoje. O Pedro ainda não chegou do trabalho e ele anda muito chato.”

Quase que instantaneamente, Janice recebe um retorno: “E o tal cara do MSN?”

“Vou falar com ele agora.”

“Você não acha que essa conversa já foi longe demais?”

“Talvez. Acho que vou terminar tudo hoje.”

“Ih... Sai logo dessa! Essa história de romance no computador é roubada. Você já não está cansada de ouvir coisas escabrosas que aconteceram a partir de um papinho inocente?”

“Lógico que sim. Mas está rolando algo... Olha tenho que ir. Amiga, por favor, só você sabe disso!” De repente ela olha em volta da sala como se alguém a espiasse, respira fundo, se ajeita no sofá e entra no MSN.

Diante da tela do computador, Marcelo se concentra e escreve: “Você está aí?” Espera alguns segundos e, enquanto isso, olha pela janela e quando volta o olhar para o interior do ambiente se depara com Janice na porta de seu quarto.

– Posso entrar? – pergunta Janice com um sorriso matreiro.

– Oi... – num impulso, ele se levanta da frente do computador. Pensa em beijá-la, mas desiste e procura ser hospitaleiro, um pouco desconcertado por não haver outra opção: – Senta aqui – e dá duas batidinhas com a ponta dos dedos na colcha da cama, que não era trocada havia quase uma semana e meia, por conta da falta da faxineira na véspera.

– Não foi pra isso que eu vim aqui... – diz Janice já se sentando na cama.

– Desculpe. Eu não queria...

– Sabe que você é igualzinho à foto? Aliás parece até melhor pessoalmente.

– Não era pra ser assim, igual à foto? – diz ele, meio nervoso e ignorando o elogio, voltando para seu lugar à mesa do computador.

– Claro que não. As pessoas se escondem na internet. Eu mesma...

– Mas você é casada. Aí é diferente. Ou não é casada?

– Sou. Eu não menti pra você.

– De qualquer forma, eu adorei sua foto com o desenho da lagartixa na pedra.

– Hahaha... aquela também sou eu.

– Você é tão linda.

– Você também não é de se jogar fora, Marcelo. É esse seu nome mesmo?

– Sim. Eu também não menti pra você. Mas posso supor que seu nome não seja “lagartixanapedra@...”

– Não... é Janice.

– Bonito nome. Combina com você.

– Mas pode continuar a me chamar de Tixa. Eu gostei.

– Tá bom. Eu estou adorando te conhecer – arrisca Marcelo.

– Eu também. A gente até que se diverte.

– Mas confesso que tem uma coisa que ainda não entendi...

– Deixa eu adivinhar. Por que eu entrei num site de relacionamento? – se antecipa ela.

– Exato!

– Até parece que você nunca foi casado! Ou não foi? A Bruna existe mesmo?...

– Sim, infelizmente.

– E você? Livre, morando sozinho, bem apresentável... Por que entrou num site desses? Não devia precisar!

– Mas é que sou tímido... Vem cá, isso não é justamente pra quem está solteiro?!

– Ih... – interrompe Janice. – Sujou. Nos falamos depois – e vai se levantando da cama de Marcelo.

– Espera...

– Ah, me diz uma coisa: você não contou pra ninguém, não é?

– Não, eu...

– Então, tá – interrompe mais uma vez Janice, dando-lhe um beijo de leve na boca. – Deixa o computador ligado, Marcelo. A gente se fala mais tarde.

Subitamente Janice some. Marcelo vai até a cama e apalpa o vazio como se não acreditasse. Acaba se deitando um pouco e adormece. Quando acorda, quase duas horas depois, lembra-se do combinado e pula em cima do computador. “Você ainda está aí?”, escreve ele. Janice está recostada em sua cama, com o laptop no colo, e o marido, Pedro, ao seu lado, dorme profundamente. “Estou, seu furão!”, responde ela. Marcelo então aparece na cama do casal, entre os dois.

– Eu dormi um pouquinho... – diz ele, olhando com estranhamento em volta.

– Shh... Fala baixo! Se o Pedro acordar, ele me mata! E estou muito nova pra morrer...

– Do jeito que ele está roncando... – sussurra Marcelo, tirando o braço do outro de cima de sua perna – Você está tão sensual...

– De roupa de dormir? Assim a gente vai cortar todo o romantismo!

– Isso não é problema. Pra mim você está nua... O problema é ele.

– A gente não pode continuar a se encontrar desse jeito... – diz ela, deixando o laptop na mesinha de cabeceira.

– Também acho. Me dá um beijo?

– Toma, vai – Janice dá um selinho rápido, parecido com o outro da casa de Marcelo.

– Assim não... – ele tenta abraçá-la.

– Para com isso... agora não!

Nesse momento, Pedro tosse e se mexe na cama.

– Vamos nos encontrar amanhã, mas de verdade – diz Marcelo baixinho.

– Amanhã?

– É... Vamos nos encontrar na rua, num lugar público.

– Mas tem que ser em segredo.

– Deixa eu terminar. Um encontro sem aproximação... Depois a gente vai, separado, para um lugar tranquilo, só nós dois... e sem internet.

– Até que não é má ideia. Mas você não pode ir com essa camisa velha, por favor.

– Eu estava agora em casa, esqueceu?

De repente, o marido abre os olhos. Janice pega o laptop de novo. Marcelo fica petrificado.

– Você disse alguma coisa? – pergunta Pedro, sem notar a presença do outro.

– Não... Dorme – diz Janice fingindo digitar algo. – Você precisa descansar. Daqui a pouco eu vou também.

– Tenho uma reunião importantíssima amanhã. – Pedro vira para o lado e dorme de novo.

– Como é que ele não me viu?! – fica sem entender Marcelo.

– Acho que o Pedro não consegue enxergar mais coisa nenhuma!

– Você tem que ir! Eu vou. Você topa?

– Então você vai. Se eu aparecer, é porque topei.

– Ótimo. Amanhã de manhã te mando uma mensagem com o endereço... Tixa... – Marcelo dá em Janice um beijo longo, espaçoso, empurrando o marido mais para a beirada da cama. No início ela resiste, mas retribui um pouco constrangida. Depois fica emburrada (“de tímido não tem nada...”) e fecha o laptop. Marcelo desaparece. Janice desliga a luz do abajur e dorme.

No dia seguinte, Marcelo se veste com esmero, bota perfume e chega cedo ao local combinado. Anda em ziguezague pela calçada, apreensivo. Procura por Janice por todo o quarteirão e não a encontra. Faz o mesmo trajeto duas vezes, caminhando devagar e reparando em cada rosto que passa. Vem à sua mente que talvez tenha forçado a barra no final. Quem é tímido não deve fazer certas coisas. Desanimado, pensa em desistir. Até que ela surge, sorrindo, do outro lado da rua.


sábado, 24 de setembro de 2011

2 poemas de Gullar

INSETO

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo
que uma hidrelérica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida


NEM AÍ...

Indiferente
           ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
         à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
         o gatinho
         se espreguiça
         e deita-se e
         adormece
                 em cima do poema


(Ferreira Gullar)

sábado, 10 de setembro de 2011

Ad infinitum

“A frase para sempre é uma das baixas de nossa época.”
(Luís Fernando Verissimo)


Olhando para dentro do domingo
não vejo a praia, a parede
nem poeira onde possa me agarrar.
Estou sozinho no meio do azul
sem nenhum cobertor ou trago.
As lembranças afloram úmidas:
situações que supunha
hoje pouco
evidenciam o nosso impasse.
Entro no cinema para ver fantasmas.
Leio poemas de uma amiga stradivarius
e mastigo mágoas até amanhecer.
Não devia, mas
sinto como um navio
a tua falta.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Oficina de Poesia e Letra de Música

O Projeto Estação Pensamento e Arte ocupa a Biblioteca Municipal de Botafogo (R. Farani 53) entre agosto e dezembro com diversos cursos e palestras bacanas. Segue a programação dos próximos cursos, entre eles minha Oficina de Poesia e Letra de Música. Todos os cursos são gratuitos.






terça-feira, 9 de agosto de 2011

É campeão!

DE BAR EM BAR (88) – Da Gema


         Esta crônica tem uma trilha sonora específica, o disco “Viva Muddy Waters”, do Blues Etílicos, apesar de aqui ser um lugar do samba: na porta do banheiro em vez de M e F há fotos de Donga e Chiquinha Gonzaga. (Mas, como se sabe, blues e samba são irmãos; e botequim bom não precisa ter fronteira etílico-gastronômica nem musical.) Porém o que importa é o seguinte: até que enfim pude vir ao Da Gema, o bar vencedor do último Comida di Buteco, evento que se tornou fundamental por revelar a nós, cariocas e agregados, ótimos bares que talvez deixássemos de ir sem a boa visibilidade que os concorrentes recebem. Parabéns Eulália, Ronaldo, Flávia e toda a turma por nos fazer sair de vez em quando do querido bar da esquina. Isso é cultura. Dito isto, vamos ao boteco que ele merece.

         Sem nenhum rodeio, é importante reconhecer logo: o Da Gema é um bar sensacional. Mas por quê? Por que dá para se sentir em casa logo na chegada, o bar é arejado, o clima é relax, a aura é boa. E fica numa esquina. Sento-me numa mesa de frente para a rua Barão de Mesquita e, olhando para dentro do bar, para um desenho do Cristo Redentor, com os braços abertos, fazendo sinal de positivo. Chega o garçom Pedro, um gigante com cara de vilão, que me conquista de cara nas primeiras intervenções. Peço uma Brahma Extra e observo ao redor. As paredes, menos a que tem uma reprodução dos ditos do Profeta Gentileza, são da cor do cabelo da namorada de Chico Buarque (embora este seja um assunto mais para os paparazzi e para os que querem ler as canções do recente disco do mestre ao pé da letra; pra mim basta saber que ela é bela e que pode vir a ser uma das nossas grandes cantoras, sobretudo pela simplicidade e sofisticação do repertório).  As paredes são cor de abóbora.

         Eis que chega o meu convidado. Ele é um cara que eu admiro há muito tempo. Lembro-me de ver um show impressionante de sua banda no final dos anos 80, no Sérgio Porto, e eu, na plateia lotada, boquiaberto, me sentir no Mississipi pela primeira vez, ao vivo, com músicos brasileiros. Este foi o primeiro de uma série de shows a que eu assisti do Blues Etílicos, sempre me encantando com o blues verdadeiro, na veia, sem frescura e muito bem tocado. Bedran é o baixista da banda e meu companheiro de copo nesta tarde-noite. Pedimos mais uma cerveja e uma porção de polentinha frita com rabada, por indicação do garçom Pedro. Aliás, ele aproveita e já dá também a dica de que quando quiser mais cerveja, não precisa nem chamar, é só tirar a garrafa da camisinha térmica. “Pra não interromper o papo de vocês.” Grande Pedro.

         A polenta com rabada veio maravilhosa, em cubinhos delicados e saborosos. Poderia ser um bate-entope danado, mas tinha leveza e só fez atiçar a vontade de provar outras delícias. Sempre com a discreta e certeira orientação do nosso garçom, enfileiramos o pastel de feijão, o bolinho de vagem e a lasanha de jiló. Qual o melhor? Impossível dizer. Outras opções do cardápio: nachos cariocas (com batatas portuguesas no lugar das tortilas), parmegiana de carne e frango, fondue Da Gema (linguicinha e costelinha com creme de milharina, milho branco, temperos e mozarela), bolinho de gorgonzola, moela, empadas e caldos de batata baroa com minas curado, de abóbora com camarão e o clássico mocotó. Entre as cervejas, a citada e nem sempre fácil de encontrar Brahma Extra, Therezópolis, Bohemia, Norteña, Patrícia, Quilmes, Stella Artois, Leffe e Franzizkaner. Quanto às cachacinhas, todas da melhor estirpe.

         Eu e Bedran, além do êxtase gastronômico, estamos felizes com uma parceria que fizemos. Este é sempre um dos momentos mais prazerosos da hoje difícil carreira de compositor (em tempos de pirataria e download gratuito desenfreados): quando a letra e a música, que existiam separadamente, viram uma terceira coisa. Em poucos minutos a música encaixou perfeitamente com a letra. O problema é que não registramos a composição... (ele jura que depois vai lembrar). A comemoração pede que tomemos uma cerva diferente. Escolhemos a Franziskaner, uma das cervejas de trigo mais conhecidas do mundo. E é o momento para o garçom Pedro mostrar o porquê de estar numa lista de votação dos melhores garçons do Rio. Dá um show à parte ao colocar a cerveja dourada e opaca no copo alto, variando a altura da queda do líquido no copo e atingindo um resultado espetacular. A cerveja desceu refrescante e o brinde foi de pura satisfação.

         Depois disso, o que faltou dizer, amigo leitor? Apenas duas coisas muito importantes. A primeira foi que ainda continuamos a saga dos tira-gostos pedindo o famoso “Doce subsolo do boteco”, que vem a ser o vencedor do Comida di Buteco, e para fechar um caldo de abóbora com camarão. Show. Mais uma vez fomos surpreendidos pelos sabores e no caso do petisco campeão (creme de feijão, creme de aipim com laranja, couve, carne seca desfiada, com casca de laranja e pétala de rosa por cima) tivemos a linda apresentação visual do acepipe num quadradinho de vidro. Para finalizar, não posso deixar de mencionar o casal de simpáticos gordinhos que estavam numa mesa perto da nossa. Eles estraçalhavam o que viam pela frente numa rapidez de concurso e com o sorriso estampado no rosto como se não houvesse amanhã nem colesterol. Felicidade é isso aí. Saúde e até a próxima.
        
Da Gema – Rua Barão de Mesquita, 615, C e D, Tijuca (2208-9414)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Oficina de Letra de Música

Vou dar uma Oficina de  Letra de Música na Estação das Letras em agosto e setembro. A quem se interessar, segue o flyer com as informações:       

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dois poemas de Cacaso

LAR DOCE LAR


Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio

(Cacaso)

         *          *          *

HORA DO RECREIO


O coração em frangalhos o poeta é
levado a optar entre dois amores.

As duas não pode ser pois ambas não deixariam
uma só é impossível pois há os olhos da outra
e nenhuma é um verso que não é deste poema

Por hoje basta. Amanhã volto a pensar neste problema

(Cacaso)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O amigo de kerouac

(A SOMBRA DO FAQUIR 19)


                            


         A quem tanto poderia interessar os dramas e as peculiaridades neurastênicas de um sujeito meio perdedor meio ganhador, não exatamente bonito, mas sempre cercado narcisicamente das mais belas mulheres, por quase 50 filmes? Se for Woody Allen o personagem/autor em questão, a muita gente mesmo. Pouquíssimos cineastas podem hoje se dar ao luxo de ter um trabalho estritamente autoral e se manter ao mesmo tempo no mainstream. Como o primeiro Woody Allen a gente nunca mais esquece, o meu foi “A última noite de Boris Grushenko”. Desde então virei fã de toda sua atividade artística (menos tocar jazz).

         Woody Allen faz parte daquele seleto naipe de artistas que se repetem a cada trabalho e ficam melhores. (Há quem diga, por exemplo, que o grande escritor reescreve sempre o mesmo livro). Claro que há os que não gostam, ou até os que acham que é um cineasta menor, como declarou Caetano em entrevista (apesar da ressalva de que seria um cara legal, com frases brilhantes e algumas cenas espetaculares). Se o critério para esta consideração for o caráter inovador da obra do artista, talvez sim; mas o fato é que poucos trataram exaustivamente de suas obsessões com sucesso de crítica e público na segunda metade do século vinte como Woody Allen, em âmbito planetário, e, no quintal tupiniquim, como Nelson Rodrigues, que brilhou sempre mais alto. (Embora, entre nós, o trabalho de Woody Allen talvez possa, sob certos aspectos, ser mais identificado com o do também grande cineasta e dramaturgo Domingos de Oliveira).

         Meu amigo Maurício Barros me telefonou para recomendar que não perdesse o novo filme. Outro grande amigo, Ricardo Coelho, de Natal, depois de ler pela internet matérias elogiosas disse que se demorasse muito a chegar por lá iria gastar algumas milhas vindo ao Rio. O Dapieve revelou que gostou tanto que não conseguiu (ainda) escrever a respeito. Várias outras pessoas comentaram que o filme é incrível. Pois fui ver “Meia-noite em Paris” com esta alta expectativa – o que gera o pendor a se ter um nível de exigência tão elevado que costuma desaguar em decepção. Mas ainda bem que não foi o caso. Quando a expectativa lá em cima é plenamente satisfeita, ou até superada, o prazer é transcendente. Achei que é um dos melhores e mais marcantes filmes de Allen.

         Muito se tem especulado sobre um dos dois grandes temas do filme, que vem a ser aquele que decorre da sensação de se estar vivendo na época errada. Ou, talvez, do desejo demasiado humano de se viver numa época diferente da que se está. Mas o outro grande tema é o que mais me mobiliza: o poder e o fascínio da arte e a entrega que é necessária para exercê-la. Para dar o salto mortal sem rede embaixo muitas vezes é preciso fazer sacrifícios existenciais (e financeiros) imensos. É um dilema que todo artista em algum momento precisa passar. Quanto ao período em que eu gostaria de viver, diria que tenho bem mais curiosidade pelo futuro do que pelo passado. Mas, para não ficar alheio à enquete que se tem feito por aí, não seria nada mal ser amigo de Jack Kerouac e viver tomando todas com os beatniks on the road.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

(Um poema nada aleatório)

A CHAVE SHUFFLE

  não há
  alento
aqui no restaurante
                        a quilo
eu tento
            quebrar
                        a casca
de meu filho
                        adolescente
enquanto vivo
            meu próprio dilema
estacionado
  num
     não-lugar

como meu sushi
                                   tomo meu chope
           penso
que tenho que ser forte
                                   e preciso mudar
   em um monte de coisas

quando chegam
                                   à mesa da frente
   um velho bem velho
                                   que poderia ser
                                                           meu avô
e a namorada
                        pelo menos
                                   40 anos mais jovem
ele está íntegro,
            em êxtase
                                   ela sorri 
                                               – parece ser compreendida
                 com discrição e tranquilidade
logo me desinteresso
                        no entanto o velho
                                   diz
                        peremptoriamente:
há dois níveis de pessoas
os que levam a cabo
                        a tarefa
e os que vão pagar por isso
sei que não diz tal coisa
                                   para mim
(nem o cobertor curto o que
você é o que você tem)
mas é como
se
fosse
       a cabala
            um biscoito da sorte
    que me coube
            (randomicamente)
                        no afã
da
verdade 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Assim foi se lhe parece

Era uma vez um esporte jogado com os pés que foi inventado na Inglaterra (embora haja registros do jogo, numa forma bem rudimentar, que remontam à China de antes de Cristo) e foi trazido para o Brasil por um paulista chamado Charles Miller, no fim do século 19. Convencionou-se estipular que este foi o início de tudo para nós brasileiros: as bolas que Miller trouxe da Inglaterra em sua mala no ano de 1894. O esporte, porém, não se disseminou de imediato, uma vez que seus praticantes iniciais eram apenas os filhos da alta burguesia. Os esportes mais populares até então na capital do país, o Rio de Janeiro, eram o remo e o turfe.

Por conta dessa origem elitista somente a partir da década de 1910 é que o esporte, com a realização de torneios organizados e os primeiros amistosos entre as cidades, passou a ter mais relevância, inclusive na imprensa. No limiar do século 20, os jornais praticamente ignoravam as atividades esportivas, dedicando-lhes pouco ou nenhum espaço. Mas tiveram que se render à força e ao fascínio do jogo que, num primeiro momento, era disputado com material importado: bola de couro, uniformes de linho e algodão e sapatos especiais. É considerado um marco no sentido da sua popularização a incorporação de atletas negros por parte do Vasco da Gama em 1923; embora o Bangu já os tivesse aceitado antes, o Vasco foi o primeiro grande clube a aderir ao óbvio: o crescimento do esporte dependia de sua penetração nas classes trabalhadoras.

Passado algo em torno de 100 anos, o esporte está, indiscutivelmente, consolidado não só como a paixão nacional, mas também como o mais querido em todo o planeta. Qualquer criança que já chutou uma bola sabe disso. Pegue, por exemplo, dez adolescentes de 15 anos, de qualquer lugar do mundo, e mostre fotos de Pelé, Maradona, Ronaldo Fenômeno, Kaká, Messi, Cristiano Ronaldo. Mostre a camisa do Barcelona. Provavelmente serão todos, ou quase todos, reconhecidos e considerados familiares. Mas naturalmente não foi sempre assim.

Imaginemos as dúvidas e o receio do jornalista que foi escalado pela primeira vez para cobrir um evento do esporte nos seus primórdios. Como escrever sobre algo que a maioria das pessoas não tinha a menor ideia do que se tratava? Como contar o que é uma partida de futebol, se isto nunca havia sido contado? Tarefa bastante difícil inventar um cânone. Vejamos um pequeno trecho de um jornalista desbravador, cronista do Correio do Povo, a quem foi atribuída a função de escrever sobre o primeiro Gre-Nal da História, realizado em 1909:

Lindíssimo era o aspecto que apresentava anteontem o ‘ground’ dos Moinhos de Vento, quer pela sua ornamentação como pela concorrência. Lá estavam cerca de 2.000 pessoas ansiosas por assistir ao encontro dos primeiros teams do Grêmio F. Ball P. Alegrense e do Sport Club Internacional. O belo sexo, representado por grande número, apresentou-se ostentando finíssimas ‘toilettes’ entre as quais muitas adaptadas aos jogos ao ar livre. Ao projetado torneio, por várias vezes nos tínhamos referido, pois prometia ele ser renhidíssimo, como de fato o foi.

As referências à “ornamentação” e ao “belo sexo” (“ostentando finíssimas ‘toilettes’”), ao aspecto “lindíssimo” do “ground” poderiam fazer supor que se tratasse de alguma atividade cara ao colunismo social e à vida mundana portoalegrense. O emprego de estrangeirismos (como o “ground” referido) na época era comum e até bastante compreensível, principalmente no caso da língua inglesa, devido à origem do esporte e, em alguns casos, pela própria ascendência dos jogadores. Como pode ser também observado nas linhas a seguir:

Entremos a descrever em ligeiras linhas as peripécias do jogo, o qual foi além da expectativa. Às 3.25 pelo respectivo ‘referee’, sr. Waldemar Bromberg, foi dado signal de ‘kick-off’, cabendo este ao center forward Booth, do team azul. Nos primeiros minutos, o jogo esteve indeciso, pois o team azul, que era constituído de excelentes elementos, pretendia conhecer a força do seu rival. Pelo primeiro lance, verificou-se que a linha de forward do Grêmio F. B. era bem combinada e com bizarria atacava os seus adversários sendo rechaçados, por várias vezes, pelos ‘halfbacks’ do team encarnado.

Uma característica marcante do modo narrativo presente nos dois trechos e que cabe ressaltar aqui é o tipo de construção sintática utilizada pelo nosso jornalista. Para os padrões atuais, há muita pompa e prolixidade, com largo uso de expressões pretensamente poéticas. (Embora, para os defensores da norma culta, talvez seja um importante legado estético.) Para contar que no início da partida os times estavam ainda se estudando, ele afirma que o jogo “esteve indeciso”, pois o Grêmio “pretendia conhecer a força do seu rival”. Depois relata que o Grêmio “com bizarria atacava os seus adversários sendo rechaçados, por várias vezes” pelos defensores do Inter (grifo meu). Tudo isso leva a crer que a disputa estaria sendo bastante acirrada, inaugurando, portanto, em grande estilo a famosa rivalidade entre tricolores e colorados do Rio Grande do Sul. Mas não. Na verdade, o Grêmio aplicou uma surra de 10 a 0 no então recém-formado Internacional.

Em relação à linguagem propriamente literária, o escritor Nelson Rodrigues, grande fã do esporte, algumas décadas mais tarde, nos deu fartas e preciosas mostras de seu talento nas crônicas sobre o futebol. Alguns outros grandes nomes da literatura (e do jornalismo) também se aventuraram na crônica esportiva, como José Lins do Rego, Vinícius de Moraes, Roberto Drummond e Armando Nogueira, mas ninguém brilhou mais do que Nelson. Ele tinha a fértil capacidade de transformar uma peleja chinfrim numa épica jornada. Como, de certa forma, também se utilizavam da imaginação os eletrizantes locutores que ao narrar uma partida abusavam das hipérboles para prender a atenção dos ouvintes na chamada era do rádio (cujo poder com o passar do tempo e a chegada da televisão foi enfraquecido, naturalmente, mas não deixou de existir). Com a força de seu entusiasmo, os radialistas-narradores tinham que dar a ver a partida em todas as suas nuances apenas com o recurso do áudio. E – a menos que estivesse presente no estádio, e talvez vendo um outro jogo – ao aficionado só restava acreditar.

Situação completamente diferente desta é a que se vive hoje. Com a evolução e a utilização simultânea de várias tecnologias, com a transmissão dos jogos pela tevê em alta definição e o auxílio de cada vez mais câmeras, com a incorporação da internet à cobertura jornalística, tudo que é dito (e escrito) pode (deve) ser devidamente comprovado – como que num louvor e numa busca olímpica da mais pura objetividade. O próprio jornal tem hoje o seu espaço redefinido na cobertura esportiva, pois a rapidez das mídias eletrônicas pode transformar em questão de horas, ou até de minutos, uma informação quente numa notícia velha. Ao jornal caberia agora, mais do que “contar” o jogo, esmiuçar os fatos e fazer a análise das notícias.

Um bom exemplo da relação entre mídia e futebol atualmente pôde ser dado na recente final da Liga dos Campeões 2011, entre Barcelona e Manchester United. Este jogo foi assistido por mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo. Na cobertura, os jornais e as tevês forneceram incessantemente, durante os dias que antecederam ao jogo, diversos dados e informações (como faturamento, patrocínio e números de sócios dos respectivos times, além daqueles específicos da preparação e retrospecto das equipes), para forjar onde quer que fosse a ambiência da decisão. No dia seguinte, o jornal O Globo exibia a seguinte manchete: “Um futebol de outro mundo”. No corpo do texto, o jornalista Fernando Duarte afirma que “os catalães jogam, hoje, algo bem acima de tudo que se pratica no futebol mundial. E reforçam os argumentos dos que os colocam em listas dos melhores times de todos os tempos.” Claro, sintético e objetivo.

Os colunistas Renato Maurício Prado e Fernando Calazans, do mesmo jornal, e a quem cabe a função de analisar os fatos, também não deixaram dúvidas sobre o que aconteceu em campo. Escreveu Renato, com perspicácia: “Esse timaço do Barcelona é tão bom, mas tão bom que por mais forte que sejam seus adversários, na maioria das vezes, acabam parecendo medíocres – todos colocados na roda e assistindo, impotentes, ao exuberante toque de bola da equipe catalã.” Já Calazans, também lançando mão do texto ágil e da mesma entusiástica coloquialidade, foi mais preciso em seu comentário:

O Barcelona foi mais Barcelona do que nunca (67 por cento de posse de bola), impôs seu jogo, seu estilo, seu ataque, e sapecou 3 a 1 no Manchester, sem se importar com o nome do adversário, e com direito a tudo que tem de bom: jogadas e finalizações de Messi, passes de Xavi e Iniesta, e ainda um chute esplendidamente colocado de Villa. O Barcelona reservou para a final um show completo, show de melhor time do mundo.

Por mais que os tempos atuais nos levem a privilegiar a objetividade dos fatos em detrimento da capacidade imaginativa, o futebol como nenhum outro esporte mexe com a alegria e a paixão do torcedor. Poucas coisas nessa vida são tão inesquecíveis como passar de pai para filho a emoção de torcer pelo mesmo time e vibrar junto com o futebol. Porque, entre outros trunfos, e além da beleza do jogo em si, ele é imprevisível (lembre-se, por exemplo, da desclassificação em massa dos “fortes” clubes brasileiros na Taça Libertadores 2011, na mesma semana, à exceção do Santos). O brasileiro gosta do jogo bem jogado, do futebol-arte. Somos todos técnicos e entendidos no assunto. Porém, muitas vezes, o torcedor vê e ouve o jogo que bem entende – ainda que haja argumentos cristalinos e um aparato tecnológico indiscutível apontando para outro lado. E por mais que os competentes recitadores de estatísticas e os meros idiotas da objetividade (como diria Nelson Rodrigues) queiram tratá-lo – e entendê-lo – como se fosse uma ciência exata. A despeito de ser só um jogo, o futebol é muito mais do que um jogo.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Quem manda é o Russo

DE BAR EM BAR (87) – A Polonesa



Havia planejado ir ao bar vencedor do recente Comida di Buteco, o Da Gema. Mas o tempo virou, choveu e passei pro Real Chopp aqui do lado. Na hora H, já caminhando pela Toneleros, o vento frio batendo na nuca, mudamos mais uma vez, para um lugar mais perto e fechado, para a boa e velha Polonesa. (Alguém poderia objetar que A Polonesa não é um bar e sim um restaurante. Em termos ortodoxos, sim; não é. Mas eu poderia também retrucar: Não é para você, seu ingrato... peça uma pasta de repolho, uma cerveja, um steak tartare...). Depois de tantos bares goela abaixo, penso que o conceito de bar é uma questão mais do que tudo afetiva. Portanto, fomos ao bar Polonesa...

Frequento aqui há quase duas décadas e é impressionante a regularidade. A pasta de repolho e o steak tartare são imbatíveis. Como também é imbatível a dupla de garçons: Russo e Silvano. Fazia tempo que não vinha e cheguei a pensar que os dois poderiam cumprimentar-me de forma protocolar. Mas não teve disso. Quando o Russo me viu, veio pro abraço. Cumprimentou a Sylvia também com alegria. Sentamos numa mesa encostada na parede à direita de quem entra, mais para o fundo.

A iluminação baixa, as tábuas de madeira no teto, os pôsteres e as matérias sobre a casa compõem o ambiente aconchegante, me fazem sentir saudades da Polônia que ainda não conheci e, nesse momento, também ajudam a me lembrar do poeta Paulo Leminski, descendente de polonês (“Uma mosca pouse no mapa / e me pouse em Narájow, / e a aldeia donde veio / o pai do meu pai, / o que veio fazer a América, / o que vai fazer o contrário, / a Polônia na memória, / o Atlântico na frente, / o Vístula na veia”). Por enquanto há apenas outras duas mesas ocupadas em Narájow. Em vez da cerveja habitual, peço uma garrafa de vinho.

Quando o Russo traz a garrafa de Periquita e o couvert, com pão preto e francês, manteiga, azeitonas verdes e a referida pasta de repolho, pergunto pelo rubro-negro Silvano. Russo, a alegria em pessoa, momentaneamente fica cabisbaixo. “Viajou para ver o pai. O pai dele estava mal fazia tempo. Só foi o Silvano chegar que o velho morreu em seguida.” Russo fala de seu pai, que também não anda bem, já tem 86 anos. Mas a tristeza logo passa. Enche as taças até bem mais da metade. A vida tem que seguir em frente. Diz que rico só vai ficar se ganhar na loto, mas que não pode reclamar, pois já tem tudo do que precisa. Casa, carro, filhos criados. Aí começa o show.

Ansioso, ele traz logo a magnífica sopa de beterraba enquanto ainda me entretenho com a pasta de repolho que está no finzinho. Pergunto se ele não poderia trazer mais um pouco da pasta para comermos com o resto dos pãezinhos que sobraram. Russo diz que é pra já e traz uma quantidade até maior do que a inicial. Elétrico, por um instante ele vai até a cafeteira automática para fazer uma xícara para ele mesmo. “Para espantar o sono, né...”

O cearense avermelhado, de estatura mediana, gordinho, de óculos, se empolga e fala do filme em que fez uma ponta (é do diretor de “Central do Brasil”...a Camila Pitanga me adora...), vai lá dentro e mostra o jornal com foto e uma matéria sobre ele, conta da sua comemoração, na véspera, de 28 anos de casado. Ainda estamos tomando a sopa de beterraba quando o inacreditável Russo já aparece com o prato de steak tartare. Vem todo feliz, alardeando que veio no capricho e comenta que agora aprendeu um novo método para misturar o prato. Com todo o cuidado para não contrariar a estrela, observo que ainda quero aproveitar a sopa com calma. Mas ele não se faz de rogado: “já vou preparando que é pra não esfriar...” e ri. Então rio também, mesmo que não faça o menor sentido.

O steak tartare estava bem cremoso e absolutamente extraordinário. É o melhor da cidade, sempre foi. Porém, com o novo método (e a porção no capricho), a experiência gustativa dessa vez foi ainda mais transcendente, se é que isso é possível. E para dar um toque de pura anarquia ao momento sublime, Russo, depois de preparar o prato, tirou, sem nenhuma cerimônia, uma colherada com um pouquinho da porção para ele mesmo. Orgulhoso, ainda mostrou para a bela polonesa do caixa e foi degustá-la assistindo singelamente a tevê com a dona/gerente. É preciso muito moral para fazer isso.

Outros pratos que também podem ser apreciados por aqui: estrogonofe de carne, frango ou camarão, goulash, badejo grelhado com raiz-forte, sopa de palmito ou de cerveja. No quesito sobremesa, a grande pedida é o suflê de chocolate, fumegante perdição, ainda mais no friozinho. Um detalhe importante: deve ser encomendado junto com o prato principal. Mas que não foi necessário – a felicidade já estava completa. Só faltou dizer que o Russo, além de mandachuva do pedaço, ainda por cima é botafoguense. Saúde e até a próxima.

A Polonesa – Rua Hilário de Gouveia, 116, Copacabana (2547-7378)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dois poemas de Ana C.

olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

(Ana Cristina Cesar)


* * *

FLORES DO MAIS


devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

(Ana Cristina Cesar)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Inda renascerei do pó de Hipócrates

(A SOMBRA DO FAQUIR 17)




Após quase meio século de praia, só hoje aprendi a dormir de barriga para cima (quando era bebê não conta). Pode parecer uma bobagem, mas é um recurso extremamente útil quando não se consegue respirar direito. É verdade que dormi mal, volta e meia me lembrava de que estava engessado naquela posição engessada, fazendo com que o sono fosse bem rasteiro. O máximo que me era permitido pelo nariz em erupção era uma viradinha de lado. Mas foi muito melhor do que não ter dormido coisa nenhuma – que foi o que aconteceu nas duas noites anteriores.

Se pudesse tomar uma injeção, com agulha grossa e tudo, na testa ou na costela, para ficar bom logo, no ato, toda vez que caísse doente, eu o faria feliz. Sempre fui muito impaciente com doença. Acredito que parte considerável dos homens também é assim. (O que só comprova a nossa eterna imaturidade perante as mulheres). Como se sabe, elas toleram melhor a dor, e ainda assim vão mais ao médico, vivem mais. (Logo penso: viver mais para quê?... – mas estou doente, deixa para lá.)

Neste sentido, este 2011 – que já chega à sua metade – tem sido uma provação para mim. Depois de iniciá-lo com mergulhos e hábitos mais saudáveis, retomando uma empolgação esportiva que julgara abandonada no tempo, tive dores e uma temporária surdez num dos ouvidos (já tinha ouvido falar disso para músico, nunca para letrista). Depois fraturei a perna, por excesso de carga (já faz três meses e a situação ainda não voltou completamente ao normal). Tive também uma gripe forte há um mês e agora veio uma recaída. Deixo claro que não sou vítima de nada, mas fico pensando no que virá depois.

Além das conclusões apressadas (e óbvias) de que preciso me benzer e a velhice é fogo (é a mãe), fui levado a me adaptar às limitações em série. Mas pude também me dar ao luxo de dispensar da agenda o que não é essencial e tentar botar em prática a noção de que o corpo doente precisa da força da mente sã – ou de ao menos algo perto disso. E até usufruir de certo afinamento da sensibilidade que a dor e a restrição oferecem. Quando era criança, por um lado, gostava de ficar doente para não ter de ir ao colégio; depois, já adulto, para não ir ao trabalho. Só que o mal-estar geralmente não compensava. Hoje trabalho (na corda bamba) em casa fazendo o que mais gosto e de bem com a relativa solidão. Como ler e escrever estão liberados, já é alguma coisa. De qualquer forma, acho que vou procurar um Preto Velho.

(

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Panaceia

para durarmos, digamos, cem anos
eu não sei muito bem o que fazer,
mas para manter duríssimo o cano
basta continuares a me enlouquecer.


nada do que provei se compara,
ou pelo menos chega perto,
ao teu ávido manjar infindo -
só ele me extingue por completo.


já não posso te amar com geléia
sem ter na língua e na tez o instinto
de que teus pés, teus seios e teu sexo
trazem à tona o mais puro absinto.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A mosca de Pessoa

(A SOMBRA DO FAQUIR 16)




Abriguei-me da chuva forte que caía no meio da tarde no bar Casual Retrô, na rua do Rosário. O tempo esfriou muito e ouço espirros e tosses por todos os lugares. Tento me desviar deles. Mas como sou hipocondríaco e amigo de Murphy, eles me procuram obstinadamente, seja no metrô, na sala de aula (estou fazendo um curso na UERJ com o apresentador e editor do Sportv Marcelo Barreto e com o sociólogo Ronaldo Helal) ou na bela exposição de Laurie Anderson no CCBB. Menos aqui, ainda bem, no boteco do conhecido chef Santos.

Como ainda não teve início o movimento vespertino do bar, a televisão mostra o jogo do aguado e milionário campeonato inglês apenas para um ou outro garçom. Há nesse momento uma única mesa ocupada, com duas pessoas, no fundo do salão. Peço uma taça de vinho e uma mineral sem gás. Percebo que os dois sujeitos, ostensivamente diferentes, enquanto conversam, bebem da garrafa de cachaça mineira Meia Lua Prata e fumam charuto. Como o bar estava vazio e ninguém disse nada preferi não protestar e sim esticar os ouvidos.

– Quem diria, Fernando, você com essa cara de caretão é muito mais louco do que eu!

– Que nada, meu caro artista! Está aí um quesito em que dificilmente algum outro ser humano irá suplantá-lo. Isto sem falarmos do seu talento musical, naturalmente, que também é fora do comum.

– Porra, você não, véio!... Já chega eu ter que ouvir, do além, o tempo todo... Toca Raul... Toca Raul... Não vem puxar meu saco! Aliás, com qual de vocês estou falando?

– Ora, com qual... Você não está me vendo?

– Sim, estou, mas e daí?... Você é tantos. E não vai me dizer que estou me referindo à sua metamorfose ambulante por causa desta bendita cachaça.

– Gostei da expressão... Aceita mais um gole?

– Claro, meu poeta. Mas não foge do assunto.

– Todos, exceto nunca terem levado porrada na vida, são múltiplos por definição, como eu.

– Ah, já sei! Nem mesmo você sabe qual é a pessoa da vez... ou o Pessoa... de agora. Pode me chamar de louco ou estúpido, mas dessa vez alguém te pegou.

– Quem me pegou, ó pá?

– Eu, Raulzito, seu criado.

– Tu me pegaste, como assim? Preferia que fosse Ofélia, minha antiga namorada.

– Não foge do assunto!

– De jeito nenhum. Só quem puder obter a estupidez ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz: perder, chorar, sofrer vez após vez em busca da beleza!

– Ih, rapaz, com todo o respeito... Acho que a tal da Ofélia despirocou sua cabeça. Seus olhos ficaram até vermelhos e mareados. Se você não tem colírio nem óculos escuros, bebe mais uma dose.

– Talvez seja melhor mesmo. Você é uma grande figura.

– Você acha? Ninguém tem o direito de me julgar a não ser eu mesmo. Eu me pertenço e de mim faço o que bem entender.

– Bravo! Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para pessoas como nós, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

– É isso! Grande pessoa és tu... Nada é mais coerente se virar de trás pra frente, tanto fez como tanto faz... Homem, quero mais um brinde, por favor: viva a sociedade alternativa!

– E vivamos nós, já que o próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Quando tentava entender a última frase, eis que chega meu parceiro Roberto Frejat, com quem havia combinado de almoçar e ver a exposição sobre o Poeta dos heterônimos. Comemos o ótimo Bacalhau Retrô, com batatas portuguesas e molho de mostarda, conhaque e vinho do Porto. De súbito, os dois sujeitos ostensivamente diferentes que bebiam aguardente e fumavam charutos somem do fundo do salão. Aperto os olhos e vejo duas moscas sobrevoarem a travessa vazia de bacalhau. Saciados e sem ter pesado muito no estômago, fomos flutuando com a insistente chuva para a exposição ali perto. Deslumbrante seria até econômico para definir o material que é posto à exibição pelo Centro Cultural dos Correios para nós, simples mortais privilegiados. Eu e meu querido amigo nos emocionamos e aprendemos mais um pouco sobre a biografia do poeta lusitano mais brasileiro que existe, que arriscou muitas empreitadas estapafúrdias e que transforma definitivamente quem o lê.

Quase ao final da exposição, chama a nossa atenção o seguinte texto de Fernando Pessoa, em destaque numa das paredes da sala escura: “Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia.” Frejat sorri e comenta que é totalmente metamorfose ambulante. Logo pego um pedaço de papel qualquer para anotar o trecho e, enquanto rabisco no breu, disparo a recitar mentalmente o mantra: Toca Raul... Toca Raul... Ao sair do prédio, sinto um zumbido alarmante, tão egoísta como um beijo, rasgo imediatamente o papel e o jogo no lixo; em seguida despeço-me do parceiro e sigo meu caminho, mas com o mantra (e o zumbido) ainda na cabeça.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Lexotan

no auge do meu sofrimento, o telefone

toca e uma voz de criança pergunta:

aí é do baú da felicidade?

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O lado mais sombrio do Leblon

DE BAR EM BAR (86) – Bar do Ferreira


Esta semana chega ao fim mais uma edição do Comida di Buteco. É a terceira vez que bato ponto e embarco no prazer de conhecer novos botequins, e revisitar outros velhos conhecidos, via a mineirada boa de copo que comanda esse evento (e que entende do traçado), mas dessa vez procurei ir aos bares mais perto de meu lar, pois ainda me recupero da infantil estripulia de uma fratura por estresse. Fui, entre outros, ao Bar do Ferreira, ali na Dias Ferreira esquina com João Lira, no Leblon. É um bar que há tempos eu queria conhecer. Num bairro onde já morei em vários endereços e situações.

O Bar do Ferreira era um pé-sujo frequentado pela rapaziada. Geralmente você via por lá, em pé na área externa em frente ao bar, algumas das maiores gatas e os maiores malandros e vagabundos do Leblon. Tinha aquele tipo inesquecível de garota, a que possui uma beleza selvagem e é a bad girl da escola. Sempre o observei com bons olhos. Tinha o charme e a sobriedade de se localizar numa rua interna do bairro, com acesso menos óbvio aos forasteiros. Longe do brilho fácil e carismático dos bons (ótimos) bares dos locais mais badalados. (Como Jobi, Bracarense, Clipper, o atual Chico & Alaíde...) Até que, de repente, passou por uma reforma e o Bar do Ferreira virou um pé-limpo. É o que fui conferir.

Na verdade a reforma nem é tão recente assim (2009). Mas isso não importa. Cheguei num sábado à tarde e, de longe, já vi as bandeirolas do festival. Havia um movimento moderado, mas a parte da janela, que dá o intercâmbio do interior com a rua, com cadeiras de ambos os lados, e também as poucas cadeiras na calçada estavam ocupadas. Sentei-me com Sylvia na parte interna e fomos direto ao ponto. Pedimos logo o petisco que era apregoado no cartazinho sobre a mesa. Hot roll de carne-seca. A fome era grande. Para acompanhar, dois chopes.

Esqueci de dizer que o salão a esta altura estava tranquilo. Pai e filha almoçando, um coroa tomando uísque, o garotão vendo o futebol. O espaço não é muito grande, mas é simpático. Um bom balcão, bebidas de qualidade nas prateleiras em volta das paredes. E um razoável trunfo – chope da Brahma e cerveja grande de garrafa no cardápio – para um boteco agradar gregos e troianos (como não sou nem um nem outro, comecei no chope e depois passei para a cerveja). Mas e o petisco? Veio sem graça. A apresentação era ok, a idéia de inspiração na culinária japonesa interessante (desde que você não seja um purista radical, o que não é o meu caso – sou partidário da arte acima de tudo), só que não foi o suficiente. O enroladinho de couve com aipim, recheado de carne-seca realmente não decolou. Mas isso não foi o fim do mundo.

Uma nova olhada no cardápio, e cravamos o bolinho de feijoada, uma criação do Aconchego Carioca, que ganhou fama e também o seu lugar em outros bares e versões. Fiquei curioso. Aliás o cardápio tem um elenco de opções que desperta curiosidade pela mistura de pé-sujo com pé-limpo. Aqui tem Perdidinho do Ferreira (camarão, carne-seca), espetinhos de queijo, frango, misto e filé mignon, coxinha, croquete de carne assada, risole, pasteis de bobó de camarão e de pizza, sanduíches de pernil, linguiça acebolada, salaminho e lombinho, e os pratos na chapa: camarão à paulista, picanha fatiada, calabresa acebolada, carne-seca com aipim e farofa. O bolinho de feijoada veio correto e com o bom senso de não ser uma cópia do original, mas uma variação.

O melhor mesmo veio para o final. A casa oferece de caldos o seguinte: batata baroa com gorgonzola, feijão e bobozinho. Pedimos o bobozinho. Este sim veio saboroso e consistente. Um bom motivo para descer uma Bohemia de saideira e solicitar ao discreto e eficiente garçom la contita. A esta altura está se processando a troca de turnos, o pessoal que veio tomar uma depois da praia já se foi, o velhinho solitário que espia tudo com olhos de menino travesso também e agora são casais e grupos de mulheres que se aboletam no local. Noto que, em geral, não são necessariamente da área. O público, portanto, do Bar do Ferreira cresceu. Mas, com todo o respeito, a pergunta que não quer calar é: e as lindas gatas da pá-virada, as que gostam do lado mais sombrio do Leblon, continuam frequentando? Saúde e até a próxima.

Bar do Ferreira – Rua João Lira 148, Leblon (2540-7014)

terça-feira, 26 de abril de 2011

A Suíça do Brasil

(A SOMBRA DO FAQUIR 15)





No mundo de hoje do vôlei masculino, alguém com 1,80 m como eu (que fui nada mais do que um razoável levantador em peladas do Piraquê), é um anão. (E pensar que um nome fundamental para o estágio atual do voleibol brasileiro, o ex-jogador Bernard, um dos melhores do mundo em sua época, tinha – tem – 1,87 m). O fato impiedoso é auto-explicável ao se assistir a um jogo de Liga Mundial ou de Olimpíadas, por exemplo, entre Rússia e Sérvia, ou Cuba e Holanda. Só tem gigante altamente vitaminado. Até os levantadores já possuem bem mais de dois metros.

Quando o Brasil começou a se destacar no cenário internacional, nos anos 80, a partir da geração que contava com Moreno, Bebeto e Luís Eymard para a seguinte com Fernandão (que na verdade veio da anterior), Bernard, Bernardinho, Montanaro, Amauri, Xandó, Badá e Renan, um atacante de, digamos, 1,95 m era considerado bem alto. Xandó, com um centímetro a menos, era um que estraçalhava qualquer defesa e abria um buraco na quadra adversária. Isso com a cara e a atitude de quem estava ouvindo rock´n´roll. Renan, com apenas 1,90 m, era um supercraque que fazia tudo bem – do ataque rápido e certeiro (um dos primeiros a bater a bola chutada na ponta) à recepção de líbero e até o levantamento de quem sabe. Além de ter sido objeto de desejo da platéia feminina – tão logo o esporte começou a lotar ginásios grandes como o Maracanãzinho e o Mineirinho.

Por falar em levantamento, esse quesito merece o destaque de um voo solo, já que solitário (taticamente) é o levantador, pois é ele quem pensa o jogo. O Brasil sempre se notabilizou por excelentes levantadores. Vitinho, lenda do Fluminense, e Bebeto de Freitas são algumas referências até se chegar ao capitão William da geração de prata. William Carvalho da Silva era um maestro, muito habilidoso, mestre da finta. Foi muito bem substituído na seleção por Maurício, o grande Maurício campeão olímpico (juntamente com Carlão, Tande, Giovane, Marcelo Negrão e outros). Depois veio o Ricardinho, o melhor de todos. Ricardinho, aos 31 anos, ainda desfila em quadra toda a sua genialidade, porém não mais na seleção – dizem que por problemas de ego. Pode ser. O que sei é que ele praticamente inventou um outro jogo aos distribuir as bolas com extrema velocidade e em variadas posições, para que atacantes bem mais baixos que os bloqueadores pudessem ultrapassá-los com frequência. Tanto que o Brasil passou a dominar o esporte nos anos 2000.

O que poderia ser um problema – a ausência de Ricardinho na seleção brasileira – acabou se revelando uma ótima solução para novos talentos terem seu espaço em nível internacional. E hoje há uma quantidade absurda de levantadores excepcionais atuando nos times do nosso campeonato mais importante e difícil, muito valorizado pelo repatriamento de vários craques. Só na última Superliga (2010 / 2011), eram pelo menos cinco levantadores brasileiros que podem ser chamados de brilhantes: Sandro (o campeão), William (o vice, que jogou na Argentina, conhecido por lá como o Mago), Marlon, Bruninho e o próprio Ricardinho. E a altura dos jogadores desta posição também tem aumentado muito. Já possuímos até levantador que ultrapassou a barreira dos 2 metros, como o jovem Fidele, de 2,08 m – uma das apostas do técnico Bernardinho para a seleção do futuro.

Quanto aos atacantes, nem é preciso frisar que a altura e a força hoje também são patrimônio nacional. De tal modo que uma das recentes revelações, o oposto Wallace, que jogou a última Superliga pelo Cruzeiro, o nosso atacante cubano, pela impulsão e vitalidade, é considerado baixo: tem somente 1,98 m. Isto porque contamos cada vez mais com atletas que são arranha-céus como Leandro Vissotto, com 2,12, Lucão, com 2,09, Éder, com 2,05 e Sidão, com 2,03. Mas o voleibol, apesar de toda a evolução física, ainda é um esporte em que a habilidade e o talento são preponderantes. Não é à-toa que o melhor jogador do mundo é brasileiro e olha para cima ao falar com estes atletas citados. É o ponteiro-passador Murilo Endres, com 1,92 m – como foi também o caso do campeoníssimo Giba (ainda em atividade e jogando bem), da mesma altura, e antes, de certa forma, também de Nalbert, um pouco mais alto, com 1,96 m. Todos seguindo a trilha de Renan.

Mas uma coisa é intrigante nesta história toda de sucesso e superação: o que faz com que o vôlei tenha tanta gente altíssima num país em que a grande maioria do povo (além da estatura mediana) não tem as condições elementares de saúde? E mais: como o vôlei conseguiu atingir um padrão de excelência que tem se mantido por mais de uma década inclusive nas categorias de base? – situação hegemônica que nem sempre ocorre no futebol, o nosso esporte número um. Tudo pode ser resumido em duas palavras: planejamento e organização. O Brasil do vôlei é a nossa Suíça. Por acaso ou não, um dos precursores desta jornada vitoriosa foi o jogador Jean Luc Rosat, o Suíço, atleta do Botafogo e da seleção brasileira, um dos principais jogadores do vôlei carioca, dotado de recursos extraordinários, que atuava como atacante e até como levantador.

Por fim, cabe ressaltar ainda que o planeta do vôlei é um reduto de amizade e ética. Um belo exemplo foi oferecido esses dias pelo maior jogador do mundo, Murilo. Eleito o melhor em quadra na final da Superliga, deu espontaneamente o seu prêmio para Víni, que realmente havia se destacado mais na partida, o meio de rede que era o patinho feio do time do Sesi, o único titular não convocado para a seleção brasileira. Lembro-me também de um amigo de colégio, Guilherme Rezende. Guilherme vem de uma ilustre família de jogadores de voleibol, quase todos levantadores: Rodrigo, Bernardinho e Dudu, seus irmãos, e agora o Bruninho, o sobrinho. Bernardinho transformou-se no melhor técnico de todos os tempos. Bruninho é a evolução da espécie como jogador. Guilherme, embora tenha até participado de seleções de base, não seguiu adiante com o esporte, mas é um advogado bem-sucedido e continua amigo de seus amigos dos velhos tempos. O Brasil de todos nós ainda está longe de ser o Brasil do vôlei. Muito longe. Mas o que importa é que esta ilha de excelência existe – e que bem pode nos servir de modelo para muitas outras áreas.