terça-feira, 26 de outubro de 2010

O empresário e o sonho

DE BAR EM BAR – Adega Portugália


Numa terça-feira de sol preguiçoso (uma tarde à feição de um bom boteco), fui à Adega Portugália, naquele trecho panorâmico do Largo do Machado em que dá para observar a vida pulsando na praça, com seus velhinhos de estimação, crianças com suas babás, pivetes, passantes, mulheres de todos os naipes, o mundo em geral. Chego um pouco antes de meu personagem, o empresário, produtor cultural e grande agitador do Facebook, o surpreendente Jeronymo Machado, o Jê.

Sento-me numa das mesinhas de madeira colocadas na parte de fora. Por enquanto, apenas duas ou três estão ocupadas. Na parte interna há um grande balcão com seus acepipes expostos e, ainda, um comprido salão interno com a tevê ligada para ninguém num jogo da Liga dos Campeões (na calçada há uma outra, na minha diagonal). A Adega Portugália, além do ar lusitano (como o nome entrega), respira um quê de cidade pequena onde todos sabem quem é quem.

Peço o primeiro chope quando Jeronymo aparece. Bem vestido, elegante, percebo de cara que está à vontade e curtiu o convite para o papo numa mesa de bar. Conheço-o há algum tempo, sempre o encontro em shows e eventos culturais, porém antes só tínhamos, de fato, conversado mais detidamente uma única vez. O que não é nenhum problema: temos em comum diversos amigos, a música e o trepidante Botafogo. E o Jê tem história pra contar.

Como acompanhamento, pedimos alguns bolinhos de bacalhau e pastéis de camarão. Ambos vieram bons, mas nada de excepcional. O assunto futebol é inevitável e logo fico sabendo que ele foi jogador e quase seguiu carreira. Quando era juvenil e jogava pelo Fluminense, recebeu uma proposta de ir para o Flamengo do Piauí. O pai vetou. Como era reserva no tricolor, acabou largando para se dedicar ao curso de Economia. Mas até hoje bate suas peladas no Caxinguelê, com artistas como Evandro Mesquita e ex-jogadores como Pintinho, Nei Conceição e Donizete (o Pantera). Realmente não é para qualquer um.

No calor da conversa, o chope desce igual água. Penso em pedir mais alguma coisa e o Jê sugere repetirmos os pastéis. Tudo bem, vamos lá. Mas a casa tem também no cardápio as opções: mexilhões, polvo e jiló à vinagrete, sardinhas portuguesas, carne seca acebolada, frango à passarinho, presunto tender e batata calabresa. Entre os pratos, bife de fígado com arroz e fritas, dobradinha, costela no bafo, cabrito à moda da casa, sopa de frutos do mar, risoto de bacalhau e bacalhau à Zé do Pipo. Para beber, fora o chope, uma razoável carta de vinhos, algumas boas cachaças e a tradicional caneca de vinho gaúcho.

Depois de trabalhar por um tempo no mercado financeiro (administrando, inclusive, uma carteira de amigos músicos) e ganhar uma boa grana, Jê migrou para a área da cultura e foi trabalhar na produção dos Paralamas no final dos anos 1980. Não parou mais. Trabalhou com artistas como Titãs, O Rappa, Adriana Calcanhotto, Sandra de Sá, Claudinho e Buchecha, Paulinho Moska e Nando Reis. Desde 2002 tem sua própria produtora e assim segue em frente. Múltiplo, seu telefone toca várias vezes e ele vai resolvendo as coisas enquanto pedimos uma salada de bacalhau com feijão fradinho. Gostei, mas também não me surpreendeu. De todo jeito, a Adega é um lugar que vale pelo conjunto da obra.

O que me surpreendeu mesmo (e fiz questão de lhe dizer) foi ter tido contato recentemente com alguns textos que de vez em quando Jê salpica no Facebook. Enxutos, inteligentes, bem sacados. Enquanto tomávamos a saideira, soltei: “Jê, tu é poeta. Tem que publicar!” Jeronymo Machado sorriu, quase tão orgulhoso como quando ele fala de suas filhas, as também botafoguenses Bárbara e Joana. E saiu leve para um outro compromisso, ó pá. Um empresário poeta: nem tudo está perdido. Saúde e até a próxima.

Adega Portugália – Largo do Machado 30, Catete (2558-2821)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A tropa da burguesia fede

A SOMBRA DO FAQUIR – 5


Esse não é um texto barbudo marxista, nem é sobre as surradas e onipresentes eleições presidenciais. Não prego a luta de classes, nem a implosão do Country Club (só talvez a da estátua em frente a um shopping da Barra da Tijuca). Mas assim como cantou Cazuza quando já estava bastante doente, no último disco que gravou (“Burguesia”, 1988), considerado menor por alguns críticos, muitas vezes também acho que: “A burguesia fede / A burguesia quer ficar rica / Enquanto houver burguesia / Não vai haver poesia.” Se esta canção (taxada de juvenil por seus detratores) não está entre as mais exaltadas da obra única (apesar de curta) do poeta, não deixa de ser um bom rock básico, sem firulas, seco, oportuno. Refrescante.

Fui estes dias ver o filme Tropa de elite 2, no cinema Leblon. Como veio precedido de enorme badalação, boa parte em função do sucesso e da polêmica alcançados pelo primeiro, o tumulto já era grande nas proximidades da calçada da esquina da Carlos Góis com Ataulfo de Paiva. Mas, assim como eu, a maioria do público já tinha comprado seus ingressos pela internet. (O bairro do Jobi e do Bracarense, como se sabe, é o bairro de alguns dos cidadãos mais ricos e elegantes e sofisticados e que não gostam de enfrentar fila da cidade.) E as duas salas do Leblon constituem um dos poucos cinemas de rua que ainda temos, remanescente de uma época em que, além dele e do Roxy, tínhamos um bom punhado de cinemas grandes, nostalgicamente majestosos e verdadeiramente insubstituíveis, apesar de considerados arcaicos a partir do império das salas de shopping.

O filme em si é de tirar o fôlego – muito mais do que o primeiro Tropa de elite. Embora muita gente tenha visto este apenas como uma peça de propaganda da violência e da guerra civil carioca, com teses preconceituosas e “de direita”, e possivelmente enxergarão os mesmos atributos negativos nesta continuação, considero que temos dois filmes que vão marcar época pelas suas qualidades artísticas. É impossível assistir a esta continuação da história sem ficar inteiramente magnetizado pelo que rola na tela. O ritmo da narrativa é alucinante. O desempenho de Vagner Moura é excepcional. A direção e o roteiro são de primeiro mundo (para utilizar uma expressão que é cara à burguesia). Em minha opinião, as teses levantadas, ainda que cutuquem a ferida aberta em todos nós que vivemos no Rio de Janeiro, no asfalto ou no morro, e sejam importantíssimas de ser discutidas (em especial a tese que detecta a união da milícia aos políticos), não são o único trunfo do filme. O filme é cinema de gente grande, ponto. Expressivo e muito bem realizado – chegou a merecer palmas dos espectadores ao final da sessão.

Mas o meu assunto é quando acabou o filme e as luzes foram acesas. Quando toda aquela gente elegante e sofisticada se levantou para ir embora, o que se viu no chão acarpetado foi uma imundice que poucas vezes vi na vida. Duvido que um cinema de subúrbio ou de cidade pequena, ou até mesmo um salão de festa infantil, fique em estado pior. Era pipoca esparramada por tudo que é lado, almofadas e sacos e copos plásticos abandonados de qualquer jeito. Repito: não era uma e outra pipoca que normalmente caem do saco no escurinho do cinema. Era um chiqueiro furioso. Como pessoas esclarecidas, que acabaram de ver (e aplaudir) um filme de forte cunho político e social, podem se comportar desse jeito no espaço público?

Talvez o conceito de burguês hoje em dia não seja mais tão apropriado. Na sociedade virtual da crescente mulambalização (termo eternizado pelo fotógrafo e DJ Maurício Valladares), talvez seja melhor se referir ao individualismo cego até dos mais esclarecidos e daqueles que tiveram oportunidades. “Porcos num chiqueiro / São mais dignos que um burguês / Mas também existe o bom burguês / Que vive do seu trabalho honestamente / Mas este quer construir um país / E não abandoná-lo com uma pasta de dólares.” Falou e disse, Cazuza. Tomara.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Quando o garçom se materializa

DE BAR EM BAR – Rosa de Ouro


Conheci o jornalista Ramon Mello quando fui entrevistado por ele há uns três anos (por ocasião do lançamento de um livro meu). Logo no início daquele papo, nas primeiras indagações, percebi que ele era também artista num sentido amplo. Depois disso, de fato, ele surgiu com livro de poesia (Vinis mofados), a curadoria da obra do ótimo escritor Rodrigo Souza Leão (morto precocemente), diversas entrevistas com nomes (realmente) de peso e uma peça de teatro (adaptada de uma obra de Souza Leão). Hoje ele é o meu convidado neste boteco de belíssimo nome: Rosa de Ouro.

Quando fui combinar com ele onde iríamos, sugeri uns quatro ou cinco bares. Mas ele devolveu: “Conhece o Rosa de Ouro, no início da Voluntários da Pátria? Adoro aquele lugar barulhento, e tem o melhor garçom do Rio, o Miguel.” Topei no ato, pelos adoráveis motivos alegados (o “lugar barulhento” e, claro, o nome improvável do garçom).

Chego primeiro, por volta de 18:30 h, e o pequeno bar inicia o seu movimento camaleônico para o turno da noite – assim como ocorre, por exemplo, com o Bar Rebouças no Jardim Botânico: durante o dia um pé-sujo normal, de noite um bar descolado. A essa hora ainda consigo pegar uma mesinha de calçada na beirada do bar. A vista é panorâmica pro rush dos automóveis e dos passantes e para as duas outras mesas por enquanto ocupadas do lado de fora, com dois amigos numa e noutra um cara e uma menina, ambas as duplas nos seus 20 e poucos anos.

Enquanto tomo uma primeira Antarctica, eis que chega o poeta Ramon (com seus 26 para baixar consideravelmente a média de idade da mesa), chega inquieto, pede um copo, puxa logo uma cigarrilha e o papo não para mais. A fim de acompanhar nossos pensamentos líquidos (título de um poema dele), me apresenta ao garçom Miguel, que ainda não havia se materializado (muito simpático e totalmente diferente do que eu imaginava). Pedimos mais outra cerveja e uma pizza marguerita, uma das especialidades da casa, levinha, na linha do bom, bonito e barato. Outras opções: iscas de fígado, salsichão, feijão amigo, bolinho de bacalhau. E os pratos: milanesa à parmegiana, estrogonofe, fritada de bacalhau e viradinho à paulista.

Ramon Mello, nascido em Araruama e emancipado aos 16 (desde cedo decidiu que sairia da cidade), veio para o Rio estudar teatro na Escola Martins Pena e acabou fazendo também jornalismo. Em oito anos de Rio, morou em seis lugares diferentes e nesse tempo, a partir de suas entrevistas, conheceu boa parte dos faróis da cultura brasileira. Entrevistou, por exemplo, seus ídolos João Gilberto Noll e Fernanda Montenegro. E mais nomes como Sérgio Britto, Ferreira Gullar, Michel Melamed, Heloísa Buarque de Hollanda e o próprio Rodrigo Souza Leão (de quem se tornou próximo a partir de um único encontro e de quem recebia toda semana uma ligação telefônica, sempre no mesmo dia e horário). Depois de sua morte, recebeu a obra do amigo para cuidar.

Algumas cervejas consumidas, o bar está fervilhando com a calçada apinhada de gente. O movimento do tradicional pé-sujo de bairro cresceu muito em função dos estabelecimentos que se avolumaram ali perto: cinemas, livrarias, pé-limpos e boate. O escritor Ramon, depois de nosso encontro, ainda vai a um lançamento de livros de dois amigos. Ainda pedimos com a saideira uma porção de bolinho de bacalhau, que veio apenas razoável. (Mas acho que ninguém aqui se importa muito.) Para finalizar, pergunto ao meu promissor convidado o que ele tem ouvido ultimamente. Moska e o grupo português Três Marias. O inquieto Ramon é um cara antenado, assim como esse bar Rosa de Ouro (cujo nome foi tirado de um histórico show de Paulinho da Viola e Clementina de Jesus), do bom Miguel. Sim, caro leitor, existe um garçom chamado Miguel. Saúde e até a próxima.

Rosa de Ouro – Rua Voluntários da Pátria 1, lj 11, Botafogo (2527-0565)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A selvageria do ridículo

A SOMBRA DO FAQUIR – 4


Antes de mais nada é claro que ninguém, fora o palhaço profissional e o masoquista de alma, quer fazer papel de bobo nessa vida. Mas todos, sem exceção, todos nós pagamos nosso mico (leão dourado ou miquinho comum) pelo menos em um momento ou outro – se não para todo o planeta ou a cidade, para um grupo, para poucas pessoas, para alguém lá na esquina, ou, quando é mais cruel, apenas para nós mesmos – e justamente quando ninguém vê. O ser humano sabe ser patético como nenhuma outra espécie porque, além de praticar atos ridículos, também tem a capacidade de analisá-los (ou, na maioria das vezes, os de outrem). Mas quem faz o papel ridículo não é necessariamente um idiota contumaz.

Arriscar-se ao ridículo pode eventualmente ser o preço para o sujeito dar um passo à frente. Por exemplo, no amor. O adolescente para beijar uma primeira vez precisa tentar, prestar-se a ganhar o não. E quem ama recebe de contrapeso o cheque em branco do papel ridículo (quem nunca se apaixonou e fez coisas inacreditáveis?). Pois no currículo de toda gente existe um amor que não deu certo. Mas, como sabemos, ridículo é não amar.

Também na arte o ridículo pode estar muito próximo da ousadia. Ou melhor, é o contrário: a ousadia do artista pode estar a um passo do ridículo. Dependendo do talento, da ambição e do conhecimento do que já foi feito, uma obra esteticamente muito arrojada, “uma inovação”, pode ser realmente uma inovação; mas pode (com muito mais frequência) ser uma coisa que já foi inventada lá atrás, no início do século passado ou mesmo da história da humanidade, e o artista genial só não sabe porque foi muito ingênuo (pura intuição) e não estudou.

O ridículo é próprio da condição humana. A esse respeito, Fernando Pessoa tem o célebre “Poema em linha reta” (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”), no qual o poeta afirma ironicamente que apenas ele seria fraco, covarde, vil: “Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, / Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, / Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, / (...) / Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda.” Para depois (nos) perguntar: “Então só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Um grande amigo do ridículo é a ansiedade. A ansiedade pode acabar com uma reputação construída ao longo de anos e transformar subitamente alguém (outrora respeitado) em um ser muito ridículo. Eu sou ansioso. O mundo hoje é muito ansioso, com suas mil e uma tecnologias de comunicação para dar suporte à solidão compartilhada e, também, com a quantidade ultramegablaster de radiação informativa a que somos expostos diariamente, numa razão inversamente proporcional ao conhecimento e ao sentido crítico.

Há situações ridículas pelas quais vale a pena passar uma única vez para nunca mais. É o caso do garoto de classe média que foi pego roubando uma caixa de chicletes no supermercado, ou do adulto que fez ilações completamente absurdas a partir de uma má interpretação dos fatos, ou, ainda, do jovem que se viu preso numa boite, depois de uma discussão de que não foi causador, somente por estar acompanhado de um amigo e, não por acaso (mas sem que soubesse), de um baderneiro (da noite anterior), amigo do seu amigo. Desde que se aprenda e saia intacto destas molecagens (principalmente da última), tudo vale a pena. Passar a noite numa cela de pouca periculosidade, mas abarrotada de arruaceiros encostados à parede e literalmente ver sol nascer quadrado, pode ser uma experiência sociologicamente rica e, claro, inesquecível. Foi inesquecível.

O ridículo tem uma importante função, ainda que às avessas, na tentativa de evolução do homem. Nisso o humor é mestre, utilizando-se do ridículo em estado selvagem para dar a ver uma situação ou uma atitude completamente equivocada. Mas há também os que não se emendam nunca. Existe, sim, o ridículo total (encarnado pelo bobo absoluto). É raro mas existe. No mais, todos nós podemos ser bobos (ou ridículos) para alguém. É a vida. Pois o limite entre a criatividade e o ridículo pode ser mais tênue do que parece. Basta passar um pouquinho do ponto. Por isso, diante da selvageria do ridículo cotidiano, aprender com o erro é essencial.

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Tiririca, Ratinho Jr., Garotinho e Maluf na Câmara dos Deputados... não é apenas muito ridículo – é desolador que ainda elejamos novos macacos Tião e os velhos ladrões de sempre.