sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Xangô e o monstro marinho

DE BAR EM BAR - O Caranguejo

- Xangô é rei! – dispara a mulher sentada à mesa na minha frente.

Mal chegamos e algo já está rolando. Este é um bar tradicional, inaugurado em 1982, pelo qual sempre passo, mas, curiosamente, onde não vim muitas vezes (embora tenha até morado, por alguns meses, ali perto, na Xavier da Silveira). Para mim isso é um mistério. Porque aqui você pode tomar um chopinho na calçada, traçar uma empada no balcão, ou ainda comer um belo prato no salão interno – tudo na maior categoria e no clima de botequim. Estou me referindo a O Caranguejo, discreto baluarte no coração de Copa.

Decidimos, eu e S., fazer o circuito completo no salão: chope, empadinhas de entrada e mais tarde o prato. As paredes são azulejadas na cor bege, há samambaias por todo canto, vinhos nas prateleiras e alguns garçons antigos circulando pelas 10, 12 mesas. Do lado de fora, além das mesinhas de plástico com boa ocupação, junta gente em pé para ver o futebol de domingo na TV (até o distinto PM, que seguia de passagem mas agora parece estar ali ancorado, feliz com a volta do Imperador e a ressurreição de Pet).

No salão interno, há mais umas quatro mesas ocupadas além da nossa. O garçom traz as consagradas empadinhas de camarão – e, confiante, volta logo com um prato contendo quatro. As empadas fazem realmente jus à fama. São simples, leves, perfeitas. (O prato, obviamente, voltou vazio para a cozinha.)Vemos o mesmo garçom levar uma casquinha de siri, muito bem servida, para a mesa da mulher filha de Xangô. Deu vontade de pedir uma igual, mas permanecemos fiéis ao plano de comer um prato mais para a frente. Além das empadas e casquinhas, no quesito aperitivos, há outras tentações, como sopa de siri na caneca, sardinha portuguesa e anchova frita em postas.

- Ih, olha o monstro do fundo do mar!

Era um garotinho entrando com a mãe para ir ao banheiro. Só então notei – pois o meu ângulo de visão não era favorável – que há numa das paredes uma escultura de caranguejo, gigantesca, cinematográfica. Pedimos outro chope e o cardápio para escolher, enfim, a comida. Tarefa difícil. Quer ver? A preços, bem, um tanto oceânicos pode-se desfrutar de uma “sinfonia de frutos do mar”, mariscada, caldeirada, moquecas de lagosta, bacalhau ou cherne, entre outras opções. Ficamos com um proverbial mas incrível risoto de camarão. Os camarões eram graúdos, saborosos e substanciais – e ainda levamos parte numa quentinha. O caro às vezes sai barato.

Por fim, volto à mesa da mulher filha de Xangô. Antes gostaria de assinalar que havia outras possíveis personagens, como a chinesa que devorou um peixão, ou as duas velhinhas tomando chope e comendo pastel. Mas a mulher, orgulhosa de sua espiritualidade, chamava mais a atenção do que todos. Acompanhada de dois homens e duas crianças, ela discursava longamente. Porém se zangou quando se sentiu observada. Levantou-se para ir ao banheiro e fuzilou a senhora de um casal noutra mesa: “adoro quando ficam me olhando!” A senhora riu amarelo. Ainda bem que a coluna já estava pronta. Saúde e até a próxima.

O Caranguejo – Rua Barata Ribeiro 771, Copacabana (2235-1249)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Uma pequena teoria sobre a falta de tempo

“Deveria cortar minhas unhas dos pés. Meus pés estão me machucando há umas duas semanas. Sei que são as unhas dos pés, mas não consigo achar tempo para cortá-las. Estou sempre atrasado, não tenho tempo para nada. Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo.”

(Charles Bukowski, trecho de O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Mureta, aqui me tens de regresso

DE BAR EM BAR - Bar Urca

Depois de um hiato de algumas semanas (e durante o qual, mesmo com toda a minha hipocondria, enfrentei uma estranha e potente gripe), volto, enfim, ao bar doce bar. Nada melhor para comemorar a recuperação da saúde do que um sábado de sol, uma vista deslumbrante e... uma cervejinha gelada com uns tira-gostos. Pois foi o que fiz, indo ao famoso Bar Urca.

Minha preocupação inicial era chegar lá e a mureta que separa a calçada do mar estar completamente lotada. Isto porque a “extensão” do bar, a mureta, dá de cara para o cenário cinematográfico da Baía de Guanabara e, mais ao longe, do Cristo Redentor. Então ir ao Bar Urca num fim de semana ensolarado é um programa legal, tipicamente carioca, e, por isso, inevitavelmente sujeito a uma superlotação à la Baixo Gávea. Mas dei sorte e consegui cavar meu espaço bem em frente ao estabelecimento, perto da laje onde meninos, numa algazarra total, mergulham na água como se não houvesse amanhã.

Peço logo uma cerveja Original e um pastel de camarão para abrir os trabalhos. Devo esclarecer que, se a grande cartada do bar é estar localizado num local paradisíaco e bastante seguro (pois fica colado no Forte São João), este não é seu único trunfo. Muito pelo contrário. A cozinha do Bar Urca é reconhecidamente de qualidade. Na loja, que fica no térreo, pode-se degustar acepipes fresquinhos como o pastel, a empadinha, bolinho de bacalhau, gurjão de peixe, casquinha e caldinho de frutos do mar. E, no segundo andar, há o restaurante com pratos como bobó de camarão e polvo com arroz de brocólis que fazem a felicidade do mais empedernido mortal.

O clima é de relaxamento até a chegada da polícia, que dá uma passada para dar um confere no cumprimento das posturas municipais. Até aí tudo certo. O problema é que uma certa teatralidade na execução do dever irrita os pacatos cidadãos curtindo o seu sábado à tarde. Ouve-se, à surdina, aqui e acolá: “Em vez de pegar bandido, estão aqui, cheios de marra!” “Cadê o alcaguete?” Bem, os policiais se retiram e peço meu passaporte para o êxtase gustativo: o caldinho de frutos do mar. Como que em transe, sou atiçado pela propaganda gratuita de uma bela menina que ao meu lado no balcão recomenda o quibe de peixe (“É ótimo. Quase ganhou um prêmio.”). Ainda bem que não resisti.

Eis que aparece o artista plástico Raul Mourão com o amigo Piu. Morador da área, Raul já foi mencionado numa das colunas, em Santa Teresa, como um “ilustre ausente”, e não sei por que ainda acho que ele mora lá. Falamos sobre seu atual bairro e também sobre Os Paralamas do Sucesso. Raul, que fez a capa do último CD da banda, é, como eu, um grande fã do trabalho de Herbert Vianna, Bi e Barone. Pergunto-lhe se já viu o filme sobre Herbert e ele diz que sim, e que é, de fato, comovente. Não tenho dúvida disso. Como também comove, amigo leitor, uma transcendente tarde de sol no Bar Urca.

PS: Agradeço aos que deram pela falta da coluna e informo a todos que agora ela será quinzenal. Continuará, claro, sendo um grande prazer. Saúde e até a próxima.

Bar Urca – Rua Cândido Gaffrée, 205, Urca (2295-8744)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A eterna falta de tempo

“Deveria cortar minhas unhas dos pés. Meus pés estão me machucando há umas duas semanas. Sei que são as unhas dos pés, mas não consigo achar tempo para cortá-las. Estou sempre atrasado, não tenho tempo para nada. Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo.”

(Bukowski, trecho de O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ela e o passado

“Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela; e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranquilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentaram te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: ‘moça linda...’; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu.”

(Rubem Braga, trecho de A mulher e o seu passado)