terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Pequenas malandragens portenhas

A SOMBRA DO FAQUIR 9



Logo ao chegar no hotel, a agente de turismo nos aplica as palavras decoradas destinadas aos turistas marinheiros de primeira viagem. Algumas instrucciones. Ela também determina que faremos um city tour às nove da manhã no terceiro dia. Tento resistir, mas tudo certo, vou tentar não ser tão antipático com a Sylvia e o Júlio e acordar cedo. Para finalizar lamenta que por questões de segurança todo ir e vir deve ser feito com muitos cuidados e nos alerta para não dar mole com valores, evitar notas altas para troco e, principalmente, se for andar com mochila não colocá-la nas costas e sim na frente. Tal como recomendam no metrô daqui e quase ninguém faz.

Sentindo-me o sujeito malandro carioca, vivendo em plena guerra civil, acostumado com a nem sempre fácil convivência do morro com o asfalto, apenas sorrio e digo-lhe que, infelizmente, isso não é privilégio seu. A viagem então começa. Meu primeiro dia é para sentir a cidade, sentar numa esquina e ver a vida local em movimento. Depois, no primeiro jantar, na velha churrascaria onde bato ponto sempre que venho aqui, somos atendidos por um garçom com cara de Humprey Bogart, um pouco mais maltratado, gente finíssima, River Plate até a alma. Rango e atendimento excelentes. Fim de noite, depois de um abraço no Bogart, saímos para a rua e, num cruzamento, ouço um som bonito rolando na calçada e era uma música dos Beatles, tocada e cantada em inglês bem parecido, mas com estilo bacana. Fui dar uma checada e era um gordo muito branco, de bigodes e cego. Uma figura doce. Ficamos assistindo a uma sequência de três músicas da fase mais roqueira da banda. Finalizou com Crazy a little thing called love, do Queen. Júlio deixou nossa contribuição, dada com prazer.

Não vou contar todos os passos portenhos porque até o segundo dia tudo normal, com arte, música, ótima comida e relativamente bons preços. Mas no terceiro dia, o tal dia do passeio, num miniônibus com guia turístico espirituoso e turistas robotizados (mas que mesmo assim valeu a pena fazer – é bom para ter uma noção rudimentar do espaçamento geográfico da cidade, como num curso intensivo de algumas horas), no terceiro dia, não. Depois do passeio fomos dar uma caminhada que terminou pela rua Florida, a rua da brasileiros que vão furiosos às compras e dos chatos que oferecem insistentemente câmbio, casacos de couro e shows de tango. Pois eu, malandro que sou, desdenhador das recomendações, saí com a minha mochila na posição normal, nas costas. Ao voltar para o hotel, paramos num mercado perto para umas coisas básicas e ao pagar a conta dei por falta da minha carteira. Lembro-me que antes do mercado, eu passara numa loja de vinhos e ainda estava com a carteira. Portanto o furto tinha acontecido havia poucos instantes de quando me dei conta dele. Logicamente fiquei arrasado, me ver sem o dinheiro (a maior parte do pouco que tinha em espécie ficara no hotel) foi o de menos, mas sem os documentos e o cartão de crédito numa viagem é fatal.

Porém mal deu tempo de me considerar o último dos seres e compor um tango. Ao retornar ao hotel já havia um recado de que a carteira havia sido achada. Claro que sem o dinheiro, mas com todos os documentos, inclusive o cartão. Foi como se eu tivesse ganhado na loteria. O ladrão era só um punguista barato. Não quis (ou não sabia) fazer uso de um crédito virtual que certamente eu teria dificuldade para pagar. Ainda bem. Como diria a agente de viagens, dos males o menor.

Tive ainda mais exemplos da pequena falsa malandragem do ser humano. Como o do vendedor da lojinha do Malba, um belíssimo museu, que tentou esconder rápido na embalagem que a camisa com uma máquina de escrever feita com escritos de Jack Kerouac que adorei estava rasgada. Ou do taxista nazista (“Tem que jogar bomba na favela!”) que só revelou no meio do trajeto, como quem não quer nada, que o shopping onde iríamos assistir a um filme num dia de natal sem nada para fazer e com quase tudo fechado, esse shopping também estava fechado. Como se alguém pudesse pegar um táxi para um shopping e o fato de ele não estar aberto não ser muito importante.

Fui testemunha também do caso da falsa malandragem do brasileiro no exterior, que acha que só porque é da mesma nacionalidade da outra pessoa pode puxar papo com alguma intimidade e ser inconveniente até não poder mais. Foi o caso do sujeito que tivemos o desprazer de conhecer numa volta à velha churrascaria, no penúltimo dia da viagem. “Ei, ei... o quê que é bom aqui?” “Esse cardápio tinha que ter também em português, né, mas eles são metidos a ingleses!.” “Ô botafoguense... (para o Júlio, que estava com a camisa do alvinegro) que sobremesa é essa aí?” Como já tínhamos comido, era a hora de cair fora. Mas tive uma dúvida na conta e perguntei ao garçom. Depois de esclarecimento, enquanto me levantava, o sujeito, quase com prazer, ainda tentou: “Eles erraram a conta, é?” Devo dizer ainda que fomos com a expectativa de reencontrar o garçom simpatissíssimo e ele estava lá, mas dessa vez atendia do outro lado e mal nos deu uma olhada. (Para não ser injusto, no final ele sorriu para mim e acenou. Bogart era um tímido.)

Bem, no último dia de viagem eu fui à forra. Chegara então a minha vez. Eu havia comprado na véspera do Natal uma garrafa de Stella Artois grande que não foi consumida. Como obviamente não a levaria de volta para o Brasil e também não queria deixar para o hotel, retornei ao mercado dos chineses (o mesmo onde me dei conta do furto e onde havia comprado a cerveja) e propus trocar por uma razoável garrafa de vinho (que poderia trazer) pagando a diferença. Ao tentar explicar, em portunhol, aos dois chinas que me olhavam como se eu fosse um golpista, que ainda por cima eles não entendiam bem, que comprara lá mas não tinha mais a nota, Sylvia e Júlio se afastaram envergonhados. Um impasse no caixa e no balcão estava formado e tudo parou. A fila começou a ficar impaciente. Um cliente chegou a desistir e sair do mercado. O china chefe, percebendo que eu não iria arredar o pé enquanto não conseguisse efetuar o diabo da troca, jogou a toalha e, como quem enxota um vira-lata, topou só para se ver livre de mim. Mas saí da loja feliz da vida com o vinho branco na mão.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Quase tudo sobre minha mãe

DE BAR EM BAR – Real Chopp


Ela muitas vezes me pediu para ir comigo em uma das crônicas. Ao que eu sempre desconversei para evitar uma autêntica mamãezada. Mas eis que agora vai chegando o Natal, vou viajar e não a encontrarei mais esse ano, e eu, enfim, me rendo à mamãezada: chamo a própria para ir ao boteco. Aproveito e convido meus dois irmãos, Maurício e Marcelo, para aparecerem de surpresa no Real Chopp, em Copa, bairro onde nascemos e fomos criados. Pronto, o roteiro ideal para um vale de lágrimas.

O Real Chopp é um bar que vem sendo muito exaltado ultimamente. Confesso que ao passar pela Barata Ribeiro, de carro ou de ônibus, e vê-lo à esquerda, na esquina da Barata com a Paula Freitas, nunca dei muita bola, achava que era só um botequim normal, mais um, com suas cadeiras de plástico brancas na calçada e muita gente reunida nos dias de jogos de futebol. Eu estava redondamente enganado, amigo leitor. Não é. Os elogios à casa são mais do que merecidos.

Cheguei ao bar com minha mãe (nunca pensei que fosse escrever isso; é muito estranho) por volta das 16 h. Deu para escolher tranquilamente um bom lugar na calçada, na sombra, mais para o lado da Barata Ribeiro. O calor é intenso. Peço logo um chope. Minha mãe, ao contrário dos três filhos, não bebe, apenas em ocasiões solenes e mesmo assim só muito de vez em quando. Ela vai de guaraná. Pedimos também pastéis de camarão e siri. Os dois estavam ótimos, assim como o chope. A nota um pouco destoante foi o garçom, no início meio preguiçoso, meio antipático (chegou a apenas botar os pastéis na mesa e virar as costas, sem nem se dignar a explicar qual era qual). Mas levou logo uma chamada: “Amigo, vim aqui para consumir e ser feliz. Vamos fazer as coisas fluírem na boa?” Ficou tudo certo a partir de então.

Celina, empolgada com o encontro, não para de falar. Conta casos dos netos, fala dos problemas de família. Somos muito diferentes. Eu aprecio a arte do diálogo (e em alguns casos, até do monólogo) mas também dou muito valor ao silêncio. Eu e minha mãe já brigamos muito na vida. Temos os dois temperamento forte e formas de enxergar as coisas muitas vezes diametralmente opostas. Mas ainda assim, além do amor, tenho uma gratidão e uma admiração imensa por ela. Minha mãe é uma guerreira. Ficou viúva aos 27 anos (!) e com três filhos pequenos para criar. Detalhe: meu pai era 13 anos mais velho, mineiro e machista (como se costumava ser na época), e decidiu que ela, às vésperas de entrar na faculdade, se dedicaria apenas ao lar e aos filhos. Pois quando papai morreu (eu tinha apenas sete), ela teve que ir à luta: voltou a estudar, se formou, conseguiu arrumar um emprego, deu saúde e boa educação aos filhos, comprou até apartamento. Às vezes fico pensando se hoje em dia isto seria possível. Tivemos sorte, ainda bem, para contribuir com toda a determinação épica de Celina. Minha mãe é uma guerreira.

Pedimos em seguida uma porção de trilha à dorê. Veio absolutamente sensacional – sequinha, saborosa e farta. Outras opções do cardápio: polvo e bacalhau desfiados, bolinho de carne, casquinha de siri, pastel de lagosta, presunto de Parma, batata calabresa, sanduíches de pernil, salaminho e queijo Palmira, gurjão de frango, picanha na pedra, fritada de sardinha portuguesa, linguiça mineira e ovo de codorna. O bar começa a encher e, de repente, avisto meus dois irmãos atravessando a rua. Agora escurece e cai uma chuva fina (e o guardador de carros da região senta-se num toco de cimento da calçada e se refresca.)

Meu único receio ao promover a surpresa da reunião era ela ter um troço. Mas passamos com louvor dessa fase. Minha mãe, que foi uma mulher bem bonita quando nova, apesar de muito emotiva e uma certa hipocondria (da qual também não escapei), mantém-se firme e é hoje uma jovem senhora de 68 anos. Com a chegada dos irmãos, ela é instada a beber pelo menos um chope para brindarmos ao encontro. Os dois chegam com fome e, além dos mesmos pastéis iniciais, pedimos numa sequência uma porção de filé com fritas na chapa e depois de carne-seca com aipim. Realmente, Real Chopp, difícil dizer qual a melhor.

A essa altura, vários chopes consumidos (minha mãe ainda tomou um segundo, um chope escuro), entramos num assunto bastante delicado. Um dos meus irmãos enfrenta uma turbulência familiar (quem nunca viveu algo dessa natureza que atire a primeira pedra) e anda muito triste. Conversamos a respeito com a intenção de dar-lhe força e sugerir possíveis caminhos para resolver o impasse. Falamos de coisas difíceis de serem ditas com cuidado e a intimidade que só o amor permite. Afinal, é para isso também que a família serve. Foi um início de noite inesquecível, Real Chopp. Essa crônica é pra você, mãe. Saúde e até a próxima.

Real Chopp – Rua Barata Ribeiro 319, Copacabana (2547-6673)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

À prova de dissabores

DE BAR EM BAR – Caroline Café


O bar escolhido dessa vez foi um mero detalhe. Ao definir onde seria o encontro, quase fomos a uma (ótima) churrascaria por sugestão do meu convidado. Para não contrariá-lo, cheguei até a pensar numa categoria à parte para incluir a ida a uma churrascaria no De bar em bar, tal é a importância de meu personagem. Mas mudamos tudo na hora H, após assistirmos a um debate entre a professora e ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda e Armando Freitas Filho, um dos maiores poetas brasileiros vivos e (fato que desconhecia) um cara engraçadíssimo sob os holofotes, a propósito do lançamento de uma antologia do poeta, com a seleção de poemas feita por Heloísa. Comprei o meu exemplar no ato. E fomos então ao Caroline Café, ali perto do POP, local do debate.

Mas antes de falar do bar gostaria de dizer que, assim como Armando, o meu ilustre convidado, o filósofo, poeta e letrista Antonio Cicero, pode tranquilamente estar inscrito no mesmo rol de melhores poetas brasileiros vivos, apesar da obra relativamente curta até agora. É dele o extraordinário poema Guardar (“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / ...”), incluído, com todo o mérito, no livro Os cem melhores poemas brasileiros do século (XX), com a organização de Italo Moriconi.

Bem, vamos ao bar. Chegamos ao Caroline Cafe às 20h e o local estava tão vazio e escuro que chegamos a imaginar que estivesse fechado. Entre a simpática varanda e o salão interno refrigerado, preferimos este devido ao calor. (A casa tem também um segundo andar, onde costumam acontecer festas, som alto rolando etc). Pedimos logo dois chopes. Começamos conversando sobre o curso de Poesia e Letra de Música que Antonio Cicero havia finalizado na semana passada. Ele conta que gostou da turma e da experiência inédita, para ele, de ministrar esse curso. “Mas estou mais acostumado só com a poesia. Fiquei achando que faltou falar sobre muita coisa.” Eu, que já passei pela oportunidade de dar uma oficina também sobre os dois gêneros e como seu aluno no curso, diria que foi sensacional. Tanto que ao final da última aula, vários alunos, como a elegante cantora Katia B, pediram bis, e que as aulas continuassem. Cicero consegue ser ao mesmo tempo culto e simples, coisa das mais raras. Mas sabiamente desconversou e a vida seguiu em frente.

Enquanto pedimos para beliscar um tartar de salmão, falamos sobre o trabalho do compositor, ou seja, o nosso trabalho. Antonio Cicero é coautor de músicas como “À francesa”, “Fullgás”, “O último romântico” e “Para começar”; parceiro da irmã Marina, bem como de outros grandes nomes de nossa música, como Lulu Santos, Adriana Calcanhotto, João Bosco, o poeta Waly Salomão e o meu também parceiro Roberto Frejat (com quem tem a linda “Bagatelas”). Embora o papo fluísse redondo, o tartar de salmão veio mais ou menos. De certa forma foi uma surpresa porque das outras vezes que viera aqui tinha comido bem e a casa, apesar de estar bombando, tinha clima agradável. Até o chope, a uma determinada altura, parou de vir e o garçom que inicialmente nos informou que iriam trocar o barril depois nos disse que teríamos que escolher outra bebida. Mas a troca não se fez necessária, deram lá um jeito.

A casa oferece, além de um sushi bar, os seguintes petiscos: pastéis, mini burgers, nachos com cheddar, caldinhos de feijão e de bobó, carpaccios e tacos crocantes. Em relação aos pratos de “cozinha contemporânea”, pode-se optar entre steak de atum, frango ao limão, ravióli Chanel e camarão à Cocchin (camarão ao molho de lassi – leite de coco, gengibre e masala – servido com arroz basmati). E há ainda os sanduíches: Texas burger, Baby burger, Baby chicken burguer, e Mushroom jazz (cogumelos frescos e gorgonzola no pão francês com batata frita e saladinha). Entre as bebidas, além do chope, drinques e coquetéis variados, uísque, aperitivos como absinto, saquê, tequila, vinhos e uma boa quantidade de marcas de cerveja nacionais e importadas.

Voltando ao papo sobre música, eu e Cicero lamentamos que com a revolução da música digital, a crise do mercado fonográfico, a pirataria, os downloads gratuitos e a morte anunciada do CD, a remuneração do compositor no Brasil, especialmente daquele que não é também cantor, não faz show, tenha caído tão drasticamente. A ponto de tornar hoje quase inviável uma profissão que até muito pouco tempo era remunerada com dignidade, na medida da importância que a música exerce na vida das pessoas (principalmente do povo brasileiro, essencialmente musical). Pergunto-lhe se tem esperanças de que nosso trabalho volte a ser valorizado financeiramente como na época em que se vendiam discos. “Sim, mas é preciso que se criem mecanismos para que as pessoas paguem as músicas que baixarem. Acho que isso é possível. Temos que nos mobilizar.” Concordo, e uma hora o mercado vai ter que se ajustar aos novos tempos – só espero que ainda estejamos vivos.

Conversamos também sobre Caetano, Chico Buarque e Noel Rosa, a parceria com o elétrico Waly, blogs, Barra da Tijuca, tradução de poesia e um artigo brilhante do médico Drauzio Varella, “Violência contra homossexuais” (que deveria ser lido nas escolas). O bar já tinha um outro movimento, mas mesmo assim longe daquele que presenciei noutras vindas. Fiquei até na dúvida se os cariocas estão ainda ressabiados, na ressaca dos últimos acontecimentos da nossa guerra civil cotidiana. Para acompanhar o chope de saideira, pedimos dois sanduíches Caroline burger (contrafilé grelhado, mussarela, alface, tomate, cebola e fritas). Mais uma vez, não foi grande coisa. É pena, pois, como disse, tinha boas recordações desse bar com personalidade própria. Mas às vezes tem a questão do dia também. O encontro bacana com Antonio Cicero, no entanto, valeu por qualquer dissabor. Tá tudo certo. Saúde e até a próxima.

Caroline Café – Rua J.J. Seabra, 10, Jardim Botânico (2540-0705)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quatro vezes 'Santa' e um simples obrigado

DE BAR EM BAR – Santa Satisfação

Eu, um Santa Cecília, fui nos últimos dias a um bar na cidade em polvorosa, na Rua Santa Clara, em plena “Guerra Santa” (por mais absurda que seja a expressão). O nome do bar? Santa Satisfação. Não é exatamente, mas é um pouco, o que sentem os cariocas nesse momento em que, pela primeira vez em muitas décadas, o poder público decide enfrentar o poder paralelo do tráfico e ganhar a parada. Diria o Lula que nunca houve na história desse país um enfrentamento à marginalidade tão vencedor (mas é melhor deixar o futuro ex-presidente o mais fora dessa que der para que possa esvaziar as gavetas do Planalto e fazer as malas). O fato é que a população, cansada de tanto desmando da bandidagem, está batendo palmas e aguarda com apreensão os próximos capítulos dessa guerra com direito a show de cobertura ao vivo e comentarista na televisão. Vamos ver o que será feito na sequência, com os traficantes sem sua fonte de renda e, principalmente, o que será feito com a molecada dos morros ocupados, pois sem um trabalho social de educação e arte tudo isso não será mais do que um mero band-aid gigante.

Peço uma cerveja Original e desvio meu pensamento para o bar. Afinal, a vida tem que prosseguir com o cidadão reocupando o seu espaço e a alma da cidade de volta. Duas e meia da tarde e muita gente ainda está almoçando nesse simpático bistrôzinho. Como é típico de Copacabana, especialmente num trecho tão perto da praia, algumas mesas estão ocupadas por turistas. Por falar nisso, vim bater aqui por recomendação do cantor e compositor Zeca Baleiro, um maranhense radicado em São Paulo. Uma quase-vergonha para mim, ainda mais em se tratando de um bar tão perto de minha casa. Mas felizmente nunca é tarde para o conhecimento, inclusive o de botequins e que tais.

O Santa Satisfação (um belo nome), com suas paredes metade verdes e vermelhas e metade em pátina branca, poderia ser catalogado tanto na categoria bar pé-limpo, assim como em um charmoso Café para um lanche ou restaurante para refeições leves. Ou seja, um autêntico bistrô de elegante alma feminina. Possui, no salão interno, mesas e cadeiras brancas com estofados coloridos (e sofás encostados nas paredes); e mesinhas, também de madeira porém menos confortáveis, ao ar livre na calçada. Escolho esta última localização, pois Copacabana com seus excessos, apesar de tudo, continua uma festa para os olhos. E é o que acontece quando passa na rua a amiga e escritora Ana Paula Maia, que gentilmente me dá de presente uma coletânea de contos de que participou, Todas as guerras. Nada mais atual. A propósito, Ana Paula escreveu sobre a guerra do Vietnã.

Peço uma outra cerveja, agora uma Bohemia long neck (já que a Original 600 ml não tem mais). Bate uma fome e vou consultar o cardápio. Aqui se pode degustar porções de rosbife e peito de frango, carpaccios de carne ou salmão, escondidinho de carne-seca, empadas, pastéis de forno e omeletes de camarão com queijo, salmão ou presunto. Entre os pratos, massas como penne rústico, fusilli ao pesto, farfalle de Roma, espaguete mediterrâneo e saladas variadas como Ceasar salad, caprese e primaveras carioca e francesa. Para beber, cervejas Devassa, Skol, Stella Artois (além das já citadas), vinhos, uísques, vodcas e caipirinhas.

Vejo numa mesa ao lado uma porção que não identifico no cardápio e pergunto à garçonete o que é. Trata-se do couvert da casa, que vem com batatas calabresas, torradas e duas pastinhas, uma de tomate seco e outra de gorgonzola. Peço um couvert igual e seus ingredientes caem à perfeição para acompanhar a cerveja. A esta altura o bar já deu uma esvaziada e posso trocar de mesa pois o ar-condicionado posicionado para fora do estabelecimento me incomoda, vindo diretamente em minha testa. Chego a mudar de mesa duas vezes, mas o ar canalizado parece me perseguir de forma tinhosa e cômica, até que decido ir para o salão interno e comer algo mais substancial. Algo como um espaguete Alfredo (com escalopes de frango e lascas de cogumelo ao molho branco com vinho e pimenta calabresa).

Mas antes, ao me levantar para uma das trocas, percebo que alguém numa mesa ao redor deixou cair uma caneta e vou apanhá-la. Ao devolver ao dono, este estica a mão para recebê-la sem se dignar a agradecer, nem ao menos a esboçar um sorriso falso. Aquilo me causa tanta irritação que encaro o sujeito e ao lhe passar o diabo da caneta não resisto e digo: “Obrigado, né.” O cidadão me olha como se eu tivesse pronunciado algum absurdo e vira o rosto. Por essas e outras, constato o óbvio: a alma nobre e grande da cidade não está precisando voltar só aos violentos morros cariocas. Está fazendo falta também no asfalto, onde (apenas) teoricamente estariam as pessoas mais civilizadas. Ah, sim: o espaguete Alfredo veio ótimo. Saúde e até a próxima.

Santa Satisfação – Rua Santa Clara 36-C, Copacabana (2255-9349)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Uma bela e triste tarde alvinegra (que jamais será esquecida)

A SOMBRA DO FAQUIR 8


Uma das maiores alegrias para quem adora futebol e tem filhos é passar a paixão pelo clube por que torce para a prole. Nesse ponto não tenho do que reclamar da vida. Meu filho Júlio é tão botafoguense quanto eu, se não for ainda mais fanático. Pois bem, no último domingo fomos juntos assistir ao jogo do nosso time numa condição especialíssima: na companhia ilustre do presidente do clube, Maurício Assumpção.

Esta é uma situação que a rigor não me entusiasmaria muito. Ficar de salamaleques com o poder, mesmo sendo o do clube da estrela solitária. Mordomias no camarote presidencial, tapinhas nas costas, sorrisos elogiosos e papo furado. Mas acontece que sou um admirador incondicional do trabalho da atual diretoria do Botafogo. Em pouco tempo ela deu jeito no clube e o colocou de volta ao caminho certo, de proeminência no futebol brasileiro.

Se no ano passado, como nos anteriores, brigamos para não ser rebaixados, neste, estamos (ainda) na luta pelas principais posições da tabela. O clube, que é o que mais cedeu jogadores à seleção brasileira em todos os tempos, voltou a dar destaque aos craques do passado (inaugurando, inclusive, estátuas em seu estádio de monstros sagrados como Garrincha, Nilton Santos e Jairzinho). O Botafogo voltou a ter ídolos, como Loco Abreu e Maicosuel. Ganhou o último campeonato carioca por antecipação ao vencer os dois turnos (depois de levar uma goleada humilhante do Vasco). Teve um comportamento humanista ao tratar de forma sensível o jogador Jóbson, um talento a ser lapidado, que fora suspenso pelo uso de drogas. E investiu com inteligência no marketing, atraindo torcedores das novas gerações. Isso tudo sem gastar fortunas.

O presidente Maurício Assumpção, que é dentista, por coincidência é professor de odontologia da mesma faculdade onde meu irmão, seu xará, também dá aulas. Num jantar recente, os dois se encontraram e meu irmão comentou que eu e meu filho éramos botafoguenses roxos. O presidente, nem titubeou: “Quero convidá-los então para assistirem comigo a um jogo em meu camarote.” Assim começou a saga. Recebemos o convite para ver o Botafogo contra o Internacional de Porto Alegre.

A princípio seria um jogo fácil. O Internacional, que não aspira mais a grandes coisas na competição e está voltado para a final do campeonato Mundial de Clubes, em dezembro, viria com um time misto e o seu goleiro seria nada menos do que o quarto reserva. E o Botafogo, por sua vez, jogando em casa, motivado pela disputa por uma vaga na Taça Libertadores (sonho de consumo de todos os times brasileiros), teria tudo para passar por cima. Já me via após a partida no vestiário conversando com os jogadores e comemorando com o presidente num restaurante qualquer.

Eu e Júlio chegamos cedo ao estádio. Meu filho tinha uma prova importantíssima de Química no dia seguinte, mas eu, pai compreensivo, liberei sua vinda desde que se matasse de estudar nos dias que antecederam ao jogo. Júlio, num gesto puramente teatral, chegou a levar uma mochila com cadernos e livros para o Estádio Olímpico do Engenhão. No camarote fomos os primeiros a entrar. A visão do campo era estupenda. A felicidade estava estampada em nossos rostos. Recebemos os cumprimentos e as boas-vindas do vice-presidente Antonio Carlos Mantuano e do diretor Maurão. Aos poucos foram chegando os outros convidados. No gramado, rolava um show de Michael Sullivan, o compositor alvinegro de mil e um sucessos. A torcida fazia um bonito espetáculo.

Eis que surge no camarote o ex-jogador da seleção portuguesa da Copa de 1966, o craque Eusébio, na época comparado a Pelé. Bem conservado, uma celebridade planetária. Pouco tempo depois surge o presidente. Simpático, fala de forma atenciosa com todos, mas sem se deter muito. As muitas atribuições e a tensão de um jogo capital para nossas pretensões fazem com que ele troque apenas poucas palavras com convidados distantes como eu. Tudo bem. Chegam também ao local três dirigentes de um clube uruguaio, se não me engano o Nacional de Montevidéu. Depois da experiência bem-sucedida com Loco Abreu deve vir outro atleta daquelas bandas para o alvinegro.

De repente, eu e Júlio olhamos para um dos camarotes ao lado e vemos uma parte considerável do time que seria titular do Botafogo: Maicosuel, Herrera, Fábio Ferreira, Somália (mais o reserva Danny Moraes, porém este não estava relacionado para o jogo por pertencer ao adversário). Ainda faltou o meio-campo Marcelo Mattos. Todos contundidos. Num campeonato longo como é o Brasileirão é comum os times terem desfalques por contusão. Mas no caso do Botafogo, não só perdemos nossa principal contratação (Maicosuel), como as lesões foram todas muito graves, impossibilitando os atletas de se recuperarem a tempo de voltar a atuar ainda este ano. E, como reza a lenda, há coisas que só acontecem ao Botafogo.

Bem, vamos ao campo. O time começou pressionando e deixou de marcar logo de cara alguns gols. O tempo foi passando, a pressão arrefeceu, era chutão pra lá e pra cá e nada. Final do primeiro tempo, zero a zero. Na etapa final, o time continuou a não jogar bem, a bola parecia queimar nos pés e o sonolento time do Inter abre o placar aos 20 minutos e amplia aos 29. O Botafogo desconta aos 30, mas um nervosismo avassalador toma conta do time, da torcida e do presidente, que torce com a fúria dos desesperados. Perdemos. O Botafogo estava invicto em seu estádio havia sete meses.

Clima de velório no camarote. A profunda decepção está estampada no rosto de meu filho e dos demais. Sinto vontade de chorar mas seguro a onda. O presidente, a um canto, olha para o nada e verte lágrimas de meu mundo caiu. Fico na dúvida entre falar com ele ou deixá-lo sofrer em paz. Acabo optando por sair educadamente e me despedir dele, agradecendo mais uma vez o convite. Ele mal consegue responder. Imagino que tenha pensado: “Que pé-frio! Esse eu não convido nunca mais...” No dia seguinte, Júlio se deu mal na prova de Química. Mas, apesar de tudo, foi uma bela tarde – triste e inesquecível. E o Botafogo ainda tem chances matemáticas de conquistar a sonhada vaga para a Libertadores, dependendo de uma louca combinação de resultados. Como com o Botafogo tudo é possível, vamos aguardar. Avante, Fogão. Sempre.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quando a letra vira música

A SOMBRA DO FAQUIR 7


No domingo passado participei de uma afinada conversa com Zeca Baleiro, no último dia da Bienal de Literatura de Campos dos Goytacazes. (Sim, alentadoramente em Campos não repercutem mais apenas deploráveis problemas políticos.) Com curadoria arquitetada pela professora poeta autora de livros infantis e divulgadora incansável da literatura Suzana Vargas, no evento feito em homenagem a Ferreira Gullar e Rachel de Queiroz, estiveram entre outros nomes importantes lá na Praça São Salvador: Sérgio Sant’Anna, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, João Paulo Cuenca, Ruy Castro, José Castello, Heloísa Seixas, Lêdo Ivo, Luís Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Nelson Motta, Mia Couto, Nei Lopes, Ana Paula Maia, Fabrício Carpinejar, Michel Melamed e o próprio Ferreira Gullar, nosso maior poeta vivo. Nada mau, hein?

Mediado pelo jornalista e compositor (vencedor de vários festivais de música da região) Aloysio Balbi, o tema que nós tínhamos a destrinchar para uma plateia essencialmente jovem, Zeca Baleiro e eu, era exatamente o título desta crônica: Quando a letra vira música. Como Zeca ficou preso no trânsito, tive de encarar a arena jovem lotada e começar sozinho. Poderia dizer, para ir direto ao ponto, que isso acontece, a letra virar música, no momento em que há o encaixe adequado entre letra e música; isto é, entre letra de um lado e melodia e harmonia do outro. Quando a composição fecha em uma coisa só e não há mais lados. Simples assim. Mas achei melhor começar lendo o poema que deu origem à minha canção Por você (em parceria com Frejat e Maurício Barros). Foi uma decisão acertada.

Curiosamente o tema da letra de música tem sido privilegiado nos últimos dias. Estabeleceu-se uma polêmica em jornal entre dois compositores-ensaístas de gerações diferentes que admiro, Francisco Bosco e José Miguel Wisnick, polêmica (ou diálogo) sobre o tema, especificamente sobre a letra de música que é feita antes que haja uma música propriamente. Defendeu Francisco que esta pertenceria a um gênero absurdo. Wisnick não entendeu a especificidade e falou que a letra em geral não seria um gênero absurdo. Francisco se explicou mais uma vez e Wisnick acrescentou, com carinho e respeito pelo interlocutor, que o outro falava de um gênero ao qual se dedicava, mas sem declarar explicitamente sua adesão.

Acho saudável e revelador que o debate se dê sobre o gênero que é meu também, ainda mais num nível tão elevado de argumentação, mas entendo que eles discutiram quase a espuma da onda que quebra na praia. O que importa, em minha opinião (e acredito que para o público em geral), não é saber se a letra foi feita antes, depois ou durante. Importa realmente é que a música seja boa, independentemente do processo de criação. Que a melodia e a letra estejam unidas de forma harmônica e bela, isto sim é digno de relevância para gregos antigos e baianos modernos.

Também nos últimos dias iniciou-se um curso de Poesia e Letra de Música, aqui no Rio, ministrado por Antonio Cícero, filósofo, poeta e letrista de primeira ordem. Fiquei dividido entre aproveitar o tempo necessário para outras tarefas literárias e me dar o prazer renovador de ouvir o mestre, mas resolvi fazer. No ano passado eu mesmo tive a oportunidade de dar um curso unindo os dois gêneros e foi uma experiência muito interessante. Agora, com apenas uma aula assistida, já tenho a certeza de que fiz a coisa certa. Antonio Cícero, além de excelente poeta, é culto, extremamente inteligente e o melhor: fala de forma simples e bem-humorada.

Voltando a Campos e à minha troca de impressões com o inventivo Zeca Baleiro, que começou na Bienal e se estendeu a uma mesa de bar depois do evento. Ainda que ele, um artista múltiplo, autor, dentre outras criações, de um disco extraordinário em que musicou poemas de Hilda Hilst e que agora está lançando o livro Bala na agulha (reflexões de boteco, pasteis de memória e outras frituras), já conhecesse um pouco do meu trabalho e tenhamos alguns amigos músicos em comum, foi um papo que fluiu fácil desde o abraço inicial. Foi bem recebido pela curiosa plateia e nos deixou à vontade para falar sobre inspiração, o trabalho quase invisível do letrista que é só letrista, o momento de transição do mercado, a falta de discurso das novas bandas de sucesso em oposição à nossa inesgotável fonte de talentos musicais, o descartável e o que não morre nunca. E, claro, futebol, paixão dos dois – aí já com um copo de chope na frente e o relaxamento de quem já tinha cumprido o seu dever. Por um instante me senti mesmo como que seu parceiro de fé na união indissociável de vida e arte, letra e música. Valeu, Zeca: saúde e até a próxima.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Luizinho Vermelho e o verão de 68

DE BAR EM BAR - Garota de Bonsucesso

Condensar as experimentações de uma ida ao botequim nem sempre é tarefa das mais fáceis – embora a impressão que dá seja exatamente a oposta dado o prazer inegável que é sentar num bar, pedir um chope e ver a vida passar diante dos olhos. Só que são tantas variáveis, tanto aleatório para botar no papel... Mas dessa vez, amigo leitor, confesso que foi quase como que uma tarefa impossível. Isto porque meu convidado foi o poeta, letrista, produtor e metralhadora cultural Tavinho Paes. Como encaminhar o chão da conversa? Como contê-lo nesse espaço? Só mesmo indo a Bonsucesso para saber. Foi o que fizemos.

Levados de carro por uma loura gentil e bonita, a designer Ariella Cristaldi, de Copacabana até o bairro onde Tavinho morou quando foi adolescente, a conversa de bar começou logo no longo caminho (aliás não há mais nenhum horário sem engarrafamento no Rio de Janeiro. Tudo é hora do rush. Alô, Olimpíadas, Copa do Mundo. Alô, carioca, poder público: cadê o metrô disseminado? Cadê ciclovia pela cidade inteira?).

Mal saímos do Rebouças, Tavinho Paes entrou no túnel do tempo. Seus olhos estouravam champanhe ao contar as aventuras loucas que viveu lá pelos seus quinze anos. Como o pai teve altos e baixos financeiros pela vida, o carioca Luiz Octavio Paes de Oliveira, nascido literalmente na Praça da Apoteose, morou de Ipanema a Cascadura. Passando pela Bonsucesso de 1968, com o mítico bandido Lúcio Flávio (favor não confundir com o hoje apagado e perseguido meio-campo do Botafogo) passeando de lambreta com os maiores brotos da área pela Avenida Paris. Sim, pois as avenidas de Bonsucesso têm nome de famosas cidades internacionais.

Quando, depois de um bom trecho na Avenida Brasil, viramos à direita e entramos no bairro, Tavinho mostrou-nos orgulhoso seu conhecimento das ruas e dos estabelecimentos de então (o cinema Paraíso, a favela Perereca...). Vários já não existem mais. Como o primeiro bar para onde nos dirigimos (“um dos primeiros a ter chope na Zona Norte”). Virou uma lanchonete. Tavinho pensou rápido numa outra possibilidade e lá fomos nós para o cruzamento das Avenidas Bruxelas e Nova Iorque. Perfeito. Um bar de esquina, com varanda, e de nome emblemático: Garota de Bonsucesso.

O calor é senegalesco. O relógio digital de rua marca 33 graus, mas a sensação é de 52. E o verão mal começou. “O vento não tem como entrar aqui no bairro”, esclarece o coautor de tantas músicas de êxito como Totalmente Demais, Radio Blá, Sexy Iemanjá, Linda Demais, parceiro de muitos artistas, entre eles Lobão e Arnaldo Brandão, o mais constante (com quem compôs “Bonsucesso 68”: “Lúcio Flávio morava na Roma / Fernando C.O. lá na New York / Tavinho era um menino na Bruxelas / Entre a Londres e a Paris” *).

Sentamos na varanda do lado da Avenida Bruxelas, na mesma quadra onde Tavinho morou e também onde Zeca Pagodinho fez seus primeiros shows. Pedimos vários chopes e para acompanhar espetinhos de carne de porco e linguiça mineira com farofa e molho à campanha. Nada veio muito bom, mas isso não tinha a menor importância. Ariella, fiel à sua função de nos rebocar ao final sãos e salvos, pediu uma banana split com três bolas de sorvete de chocolate, mas como não tinha sorvete de chocolate, contentou-se com uma porção de batata frita. Na verdade, para ela estava tudo bem pois também se divertia com as peripécias do nosso Tavinho.

Mas, por desencargo de consciência e justiça ao bom atendimento, cito algumas outras opções do cardápio: casquinha de siri, camarão à milanesa, bolinho de bacalhau e de carne seca, queijo prato e salaminho. Entre as refeições, espaguete à bolonhesa, churrasco misto, filé à Osvaldo Aranha, polvo à portuguesa e posta de peixe à Garota. Um cardápio bem diversificado.

De repente, Tavinho Paes se levanta e vai até o balcão conversar com o gerente. E volta com uma cachacinha na mão. Dividimos a dose e mandamos descer outra. Tavinho fala ao garçom: “Se eu pedir mais uma, ignora.” Achei melhor nem saber da marca. As seguintes doses, quem pediu fui eu. Tavinho conta então aquela que é a história central do nosso encontro e envolve o citado bandido Lúcio Flávio.

Lúcio Flávio (não confundir por favor com o perseguido meio-campo do Botafogo), cujo sonho – dizem – era se tornar pintor, político ou padre, era bandido numa época em que a marginalidade romanticamente fazia pegas em Gordinis e roubava carros no subúrbio para revender na Ilha do Governador. Bons tempos. Porém, como hoje, Lúcio Flávio e sua gangue (Toninho Caroço, Mico Preto, Fernando C.O. e outros) utilizavam os adolescentes para serem seus olheiros quanto à chegada da polícia. Tavinho foi um desses. Na época era o Luizinho Vermelho (ou Vermelhinho), não porque fosse precocemente comunista, mas porque era como ficava ao pegar sol.

Certa feita, estava num dos três carros da bandidagem quando chegou a polícia. O motorista do primeiro era Lorde GK (corruptela de Lorde Jeca), o melhor piloto da quadrilha, que disse para os moleques (entre eles, Luizinho Vermelho): “Fiquem tranquilos. Vocês estão comigo.” E começou uma perseguição de filme americano. Tavinho sentiu-se como se estivesse dentro da tela do cinema Paraíso. Foi uma das maiores aventuras do homem que decidiu entregar sua vida, alguns anos depois, à aventura da poesia e da arte. Sábia decisão. Saúde e até a próxima.

Garota de Bonsucesso – Rua Nova Iorque, 212, Bonsucesso (2564-3013)

* link para um vídeo da música:
http://www.letradamusica.net/hanoi-hanoi/bonsucesso-68.html (Programa Rock Brasil – TV Manchete – 1987)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O poeta pornográfico

A SOMBRA DO FAQUIR - 6


Certo dia toca o telefone e recebo o pedido para dar uma espécie de consultoria a um psiquiatra. Ele queria publicar um livro de poesia. Conta-me, o próprio, que tem vários livros publicados em sua área, mas no gênero onde queria se aventurar agora não conhecia os caminhos, nem ninguém. Esclarece que são poemas eróticos escritos no formato tradicional de sonetos. E que gostaria de publicar sob pseudônimo. Sem saber como começar, pergunto-lhe como chegou a mim. (Penso logo na internet, site, blog...). Ele diz que viu uma matéria num jornal sobre uma oficina que ministrei há algum tempo e correu atrás do telefone. Peço que me mande os poemas por e-mail para que pudesse ter uma opinião sobre o trabalho. Ele retruca que não possui computador e onde mora não existe internet, se poderia mandá-lo manuscrito pelo correio. Revela que trabalha no interior e tem também um consultório no Rio onde dá expediente uma ou duas vezes por mês. Por coincidência fica perto de onde moro, no Bairro Peixoto. A situação, apesar da enorme chance de roubada, era tão estranha que ficou interessante.

Tive uma grande surpresa ao ler os poemas.

O meu receio de um perigoso tarado sexual mostrou-se infundado. É realmente um cara sério, de verdade, casado (bem casado), com duas filhas. Filho de uma família abastada do interior fluminense que tinha uma indústria alimentícia, recebeu uma boa educação, vive bem, mas não acumulou patrimônio. Gosta de um bom vinho. Admirador de Baudelaire.

É dele o seguinte tributo: “Meu caro irmão Baudelaire, / em quem em vão eu me inspiro, / o que o teu Poema quer / é tudo o que eu admiro. / És autor do que eu prefiro / sobre o homem e a mulher. / (As palavras que eu profiro / são frouxas, para quem quiser...) / Tudo aquilo que a tua verve / dá sob o nome de flores / é também o que em mim ferve, / mesmo sendo eu tão banal / – pois sinto minhas tuas dores, / é meu também o teu mal...”

A referência ao poeta das flores do mal não se esgota aí: o livro se chama As florzinhas do bem – Sonetos de bandalha, blasfêmia e escracho. Está sendo publicado agora pela editora Íbis Libris. Há poemas sobre o prazer solitário (“Confissões do punheteiro”), a iniciação (“O menino e a puta”), a performance (“Conselhos para bem foder”), excrementos (“Homo cagandis” e “O mijão”). Não resisto, aliás, a reproduzir um trecho deste último: “Minha rica piroquinha / reduziu-se a um bom mijão. / Toda a potência que tinha / esvai-se em mijo no chão... / Quem se tinha por machão / e a quem mijar não convinha / precisa agora da mão / pra sacudir a gotinha...”

E há, evidentemente, o sexo com fartura. Sexo na veia. Sexo pelos poros: “Toda mulher que é pudica / – tão cheia de pudicícia! – / quando prova boa pica / sempre acha uma delícia! / Quão mais severa a moral / mais se ressente de um pau, / mais falta tem de um caralho! / Pois após tê-lo engolido / e entre as pernas sentido / a força de sua broca / logo esquece a timidez: / quer mais e mais, e outra vez, / o vai-e-vem da piroca!”.

Encantei-me com vários dos poemas que, apesar do tema controvertido, não têm nada de chulo. Muito pelo contrário, são inteligentes, simples (e não simplórios), bem-humorados, feitos por alguém que certamente leu bastante e escreve com regularidade. Incentivei-o a publicar com seu próprio nome. Mas ele, mesmo tentado, achou que não cairia bem um poeta pornográfico para a sua clientela um tanto conservadora de cidades do interior. Adotou o pseudônimo Gil Tramontana e uma das dedicatórias do livro é para Carlos Zéfiro, cujos desenhos eróticos foram como que a Playboy de toda uma geração.

Por detrás da respeitável estampa de experiente psiquiatra, magro, elegante, de barba, cabelos prateados e nada escassos para seus 62 anos, vive um jovial safado dos olhinhos infantis, um fauno incorrigível. Grande figura o novato Gil Tramontana, um cara que merece ser lido.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O empresário e o sonho

DE BAR EM BAR – Adega Portugália


Numa terça-feira de sol preguiçoso (uma tarde à feição de um bom boteco), fui à Adega Portugália, naquele trecho panorâmico do Largo do Machado em que dá para observar a vida pulsando na praça, com seus velhinhos de estimação, crianças com suas babás, pivetes, passantes, mulheres de todos os naipes, o mundo em geral. Chego um pouco antes de meu personagem, o empresário, produtor cultural e grande agitador do Facebook, o surpreendente Jeronymo Machado, o Jê.

Sento-me numa das mesinhas de madeira colocadas na parte de fora. Por enquanto, apenas duas ou três estão ocupadas. Na parte interna há um grande balcão com seus acepipes expostos e, ainda, um comprido salão interno com a tevê ligada para ninguém num jogo da Liga dos Campeões (na calçada há uma outra, na minha diagonal). A Adega Portugália, além do ar lusitano (como o nome entrega), respira um quê de cidade pequena onde todos sabem quem é quem.

Peço o primeiro chope quando Jeronymo aparece. Bem vestido, elegante, percebo de cara que está à vontade e curtiu o convite para o papo numa mesa de bar. Conheço-o há algum tempo, sempre o encontro em shows e eventos culturais, porém antes só tínhamos, de fato, conversado mais detidamente uma única vez. O que não é nenhum problema: temos em comum diversos amigos, a música e o trepidante Botafogo. E o Jê tem história pra contar.

Como acompanhamento, pedimos alguns bolinhos de bacalhau e pastéis de camarão. Ambos vieram bons, mas nada de excepcional. O assunto futebol é inevitável e logo fico sabendo que ele foi jogador e quase seguiu carreira. Quando era juvenil e jogava pelo Fluminense, recebeu uma proposta de ir para o Flamengo do Piauí. O pai vetou. Como era reserva no tricolor, acabou largando para se dedicar ao curso de Economia. Mas até hoje bate suas peladas no Caxinguelê, com artistas como Evandro Mesquita e ex-jogadores como Pintinho, Nei Conceição e Donizete (o Pantera). Realmente não é para qualquer um.

No calor da conversa, o chope desce igual água. Penso em pedir mais alguma coisa e o Jê sugere repetirmos os pastéis. Tudo bem, vamos lá. Mas a casa tem também no cardápio as opções: mexilhões, polvo e jiló à vinagrete, sardinhas portuguesas, carne seca acebolada, frango à passarinho, presunto tender e batata calabresa. Entre os pratos, bife de fígado com arroz e fritas, dobradinha, costela no bafo, cabrito à moda da casa, sopa de frutos do mar, risoto de bacalhau e bacalhau à Zé do Pipo. Para beber, fora o chope, uma razoável carta de vinhos, algumas boas cachaças e a tradicional caneca de vinho gaúcho.

Depois de trabalhar por um tempo no mercado financeiro (administrando, inclusive, uma carteira de amigos músicos) e ganhar uma boa grana, Jê migrou para a área da cultura e foi trabalhar na produção dos Paralamas no final dos anos 1980. Não parou mais. Trabalhou com artistas como Titãs, O Rappa, Adriana Calcanhotto, Sandra de Sá, Claudinho e Buchecha, Paulinho Moska e Nando Reis. Desde 2002 tem sua própria produtora e assim segue em frente. Múltiplo, seu telefone toca várias vezes e ele vai resolvendo as coisas enquanto pedimos uma salada de bacalhau com feijão fradinho. Gostei, mas também não me surpreendeu. De todo jeito, a Adega é um lugar que vale pelo conjunto da obra.

O que me surpreendeu mesmo (e fiz questão de lhe dizer) foi ter tido contato recentemente com alguns textos que de vez em quando Jê salpica no Facebook. Enxutos, inteligentes, bem sacados. Enquanto tomávamos a saideira, soltei: “Jê, tu é poeta. Tem que publicar!” Jeronymo Machado sorriu, quase tão orgulhoso como quando ele fala de suas filhas, as também botafoguenses Bárbara e Joana. E saiu leve para um outro compromisso, ó pá. Um empresário poeta: nem tudo está perdido. Saúde e até a próxima.

Adega Portugália – Largo do Machado 30, Catete (2558-2821)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A tropa da burguesia fede

A SOMBRA DO FAQUIR – 5


Esse não é um texto barbudo marxista, nem é sobre as surradas e onipresentes eleições presidenciais. Não prego a luta de classes, nem a implosão do Country Club (só talvez a da estátua em frente a um shopping da Barra da Tijuca). Mas assim como cantou Cazuza quando já estava bastante doente, no último disco que gravou (“Burguesia”, 1988), considerado menor por alguns críticos, muitas vezes também acho que: “A burguesia fede / A burguesia quer ficar rica / Enquanto houver burguesia / Não vai haver poesia.” Se esta canção (taxada de juvenil por seus detratores) não está entre as mais exaltadas da obra única (apesar de curta) do poeta, não deixa de ser um bom rock básico, sem firulas, seco, oportuno. Refrescante.

Fui estes dias ver o filme Tropa de elite 2, no cinema Leblon. Como veio precedido de enorme badalação, boa parte em função do sucesso e da polêmica alcançados pelo primeiro, o tumulto já era grande nas proximidades da calçada da esquina da Carlos Góis com Ataulfo de Paiva. Mas, assim como eu, a maioria do público já tinha comprado seus ingressos pela internet. (O bairro do Jobi e do Bracarense, como se sabe, é o bairro de alguns dos cidadãos mais ricos e elegantes e sofisticados e que não gostam de enfrentar fila da cidade.) E as duas salas do Leblon constituem um dos poucos cinemas de rua que ainda temos, remanescente de uma época em que, além dele e do Roxy, tínhamos um bom punhado de cinemas grandes, nostalgicamente majestosos e verdadeiramente insubstituíveis, apesar de considerados arcaicos a partir do império das salas de shopping.

O filme em si é de tirar o fôlego – muito mais do que o primeiro Tropa de elite. Embora muita gente tenha visto este apenas como uma peça de propaganda da violência e da guerra civil carioca, com teses preconceituosas e “de direita”, e possivelmente enxergarão os mesmos atributos negativos nesta continuação, considero que temos dois filmes que vão marcar época pelas suas qualidades artísticas. É impossível assistir a esta continuação da história sem ficar inteiramente magnetizado pelo que rola na tela. O ritmo da narrativa é alucinante. O desempenho de Vagner Moura é excepcional. A direção e o roteiro são de primeiro mundo (para utilizar uma expressão que é cara à burguesia). Em minha opinião, as teses levantadas, ainda que cutuquem a ferida aberta em todos nós que vivemos no Rio de Janeiro, no asfalto ou no morro, e sejam importantíssimas de ser discutidas (em especial a tese que detecta a união da milícia aos políticos), não são o único trunfo do filme. O filme é cinema de gente grande, ponto. Expressivo e muito bem realizado – chegou a merecer palmas dos espectadores ao final da sessão.

Mas o meu assunto é quando acabou o filme e as luzes foram acesas. Quando toda aquela gente elegante e sofisticada se levantou para ir embora, o que se viu no chão acarpetado foi uma imundice que poucas vezes vi na vida. Duvido que um cinema de subúrbio ou de cidade pequena, ou até mesmo um salão de festa infantil, fique em estado pior. Era pipoca esparramada por tudo que é lado, almofadas e sacos e copos plásticos abandonados de qualquer jeito. Repito: não era uma e outra pipoca que normalmente caem do saco no escurinho do cinema. Era um chiqueiro furioso. Como pessoas esclarecidas, que acabaram de ver (e aplaudir) um filme de forte cunho político e social, podem se comportar desse jeito no espaço público?

Talvez o conceito de burguês hoje em dia não seja mais tão apropriado. Na sociedade virtual da crescente mulambalização (termo eternizado pelo fotógrafo e DJ Maurício Valladares), talvez seja melhor se referir ao individualismo cego até dos mais esclarecidos e daqueles que tiveram oportunidades. “Porcos num chiqueiro / São mais dignos que um burguês / Mas também existe o bom burguês / Que vive do seu trabalho honestamente / Mas este quer construir um país / E não abandoná-lo com uma pasta de dólares.” Falou e disse, Cazuza. Tomara.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Quando o garçom se materializa

DE BAR EM BAR – Rosa de Ouro


Conheci o jornalista Ramon Mello quando fui entrevistado por ele há uns três anos (por ocasião do lançamento de um livro meu). Logo no início daquele papo, nas primeiras indagações, percebi que ele era também artista num sentido amplo. Depois disso, de fato, ele surgiu com livro de poesia (Vinis mofados), a curadoria da obra do ótimo escritor Rodrigo Souza Leão (morto precocemente), diversas entrevistas com nomes (realmente) de peso e uma peça de teatro (adaptada de uma obra de Souza Leão). Hoje ele é o meu convidado neste boteco de belíssimo nome: Rosa de Ouro.

Quando fui combinar com ele onde iríamos, sugeri uns quatro ou cinco bares. Mas ele devolveu: “Conhece o Rosa de Ouro, no início da Voluntários da Pátria? Adoro aquele lugar barulhento, e tem o melhor garçom do Rio, o Miguel.” Topei no ato, pelos adoráveis motivos alegados (o “lugar barulhento” e, claro, o nome improvável do garçom).

Chego primeiro, por volta de 18:30 h, e o pequeno bar inicia o seu movimento camaleônico para o turno da noite – assim como ocorre, por exemplo, com o Bar Rebouças no Jardim Botânico: durante o dia um pé-sujo normal, de noite um bar descolado. A essa hora ainda consigo pegar uma mesinha de calçada na beirada do bar. A vista é panorâmica pro rush dos automóveis e dos passantes e para as duas outras mesas por enquanto ocupadas do lado de fora, com dois amigos numa e noutra um cara e uma menina, ambas as duplas nos seus 20 e poucos anos.

Enquanto tomo uma primeira Antarctica, eis que chega o poeta Ramon (com seus 26 para baixar consideravelmente a média de idade da mesa), chega inquieto, pede um copo, puxa logo uma cigarrilha e o papo não para mais. A fim de acompanhar nossos pensamentos líquidos (título de um poema dele), me apresenta ao garçom Miguel, que ainda não havia se materializado (muito simpático e totalmente diferente do que eu imaginava). Pedimos mais outra cerveja e uma pizza marguerita, uma das especialidades da casa, levinha, na linha do bom, bonito e barato. Outras opções: iscas de fígado, salsichão, feijão amigo, bolinho de bacalhau. E os pratos: milanesa à parmegiana, estrogonofe, fritada de bacalhau e viradinho à paulista.

Ramon Mello, nascido em Araruama e emancipado aos 16 (desde cedo decidiu que sairia da cidade), veio para o Rio estudar teatro na Escola Martins Pena e acabou fazendo também jornalismo. Em oito anos de Rio, morou em seis lugares diferentes e nesse tempo, a partir de suas entrevistas, conheceu boa parte dos faróis da cultura brasileira. Entrevistou, por exemplo, seus ídolos João Gilberto Noll e Fernanda Montenegro. E mais nomes como Sérgio Britto, Ferreira Gullar, Michel Melamed, Heloísa Buarque de Hollanda e o próprio Rodrigo Souza Leão (de quem se tornou próximo a partir de um único encontro e de quem recebia toda semana uma ligação telefônica, sempre no mesmo dia e horário). Depois de sua morte, recebeu a obra do amigo para cuidar.

Algumas cervejas consumidas, o bar está fervilhando com a calçada apinhada de gente. O movimento do tradicional pé-sujo de bairro cresceu muito em função dos estabelecimentos que se avolumaram ali perto: cinemas, livrarias, pé-limpos e boate. O escritor Ramon, depois de nosso encontro, ainda vai a um lançamento de livros de dois amigos. Ainda pedimos com a saideira uma porção de bolinho de bacalhau, que veio apenas razoável. (Mas acho que ninguém aqui se importa muito.) Para finalizar, pergunto ao meu promissor convidado o que ele tem ouvido ultimamente. Moska e o grupo português Três Marias. O inquieto Ramon é um cara antenado, assim como esse bar Rosa de Ouro (cujo nome foi tirado de um histórico show de Paulinho da Viola e Clementina de Jesus), do bom Miguel. Sim, caro leitor, existe um garçom chamado Miguel. Saúde e até a próxima.

Rosa de Ouro – Rua Voluntários da Pátria 1, lj 11, Botafogo (2527-0565)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A selvageria do ridículo

A SOMBRA DO FAQUIR – 4


Antes de mais nada é claro que ninguém, fora o palhaço profissional e o masoquista de alma, quer fazer papel de bobo nessa vida. Mas todos, sem exceção, todos nós pagamos nosso mico (leão dourado ou miquinho comum) pelo menos em um momento ou outro – se não para todo o planeta ou a cidade, para um grupo, para poucas pessoas, para alguém lá na esquina, ou, quando é mais cruel, apenas para nós mesmos – e justamente quando ninguém vê. O ser humano sabe ser patético como nenhuma outra espécie porque, além de praticar atos ridículos, também tem a capacidade de analisá-los (ou, na maioria das vezes, os de outrem). Mas quem faz o papel ridículo não é necessariamente um idiota contumaz.

Arriscar-se ao ridículo pode eventualmente ser o preço para o sujeito dar um passo à frente. Por exemplo, no amor. O adolescente para beijar uma primeira vez precisa tentar, prestar-se a ganhar o não. E quem ama recebe de contrapeso o cheque em branco do papel ridículo (quem nunca se apaixonou e fez coisas inacreditáveis?). Pois no currículo de toda gente existe um amor que não deu certo. Mas, como sabemos, ridículo é não amar.

Também na arte o ridículo pode estar muito próximo da ousadia. Ou melhor, é o contrário: a ousadia do artista pode estar a um passo do ridículo. Dependendo do talento, da ambição e do conhecimento do que já foi feito, uma obra esteticamente muito arrojada, “uma inovação”, pode ser realmente uma inovação; mas pode (com muito mais frequência) ser uma coisa que já foi inventada lá atrás, no início do século passado ou mesmo da história da humanidade, e o artista genial só não sabe porque foi muito ingênuo (pura intuição) e não estudou.

O ridículo é próprio da condição humana. A esse respeito, Fernando Pessoa tem o célebre “Poema em linha reta” (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”), no qual o poeta afirma ironicamente que apenas ele seria fraco, covarde, vil: “Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, / Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, / Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, / (...) / Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda.” Para depois (nos) perguntar: “Então só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Um grande amigo do ridículo é a ansiedade. A ansiedade pode acabar com uma reputação construída ao longo de anos e transformar subitamente alguém (outrora respeitado) em um ser muito ridículo. Eu sou ansioso. O mundo hoje é muito ansioso, com suas mil e uma tecnologias de comunicação para dar suporte à solidão compartilhada e, também, com a quantidade ultramegablaster de radiação informativa a que somos expostos diariamente, numa razão inversamente proporcional ao conhecimento e ao sentido crítico.

Há situações ridículas pelas quais vale a pena passar uma única vez para nunca mais. É o caso do garoto de classe média que foi pego roubando uma caixa de chicletes no supermercado, ou do adulto que fez ilações completamente absurdas a partir de uma má interpretação dos fatos, ou, ainda, do jovem que se viu preso numa boite, depois de uma discussão de que não foi causador, somente por estar acompanhado de um amigo e, não por acaso (mas sem que soubesse), de um baderneiro (da noite anterior), amigo do seu amigo. Desde que se aprenda e saia intacto destas molecagens (principalmente da última), tudo vale a pena. Passar a noite numa cela de pouca periculosidade, mas abarrotada de arruaceiros encostados à parede e literalmente ver sol nascer quadrado, pode ser uma experiência sociologicamente rica e, claro, inesquecível. Foi inesquecível.

O ridículo tem uma importante função, ainda que às avessas, na tentativa de evolução do homem. Nisso o humor é mestre, utilizando-se do ridículo em estado selvagem para dar a ver uma situação ou uma atitude completamente equivocada. Mas há também os que não se emendam nunca. Existe, sim, o ridículo total (encarnado pelo bobo absoluto). É raro mas existe. No mais, todos nós podemos ser bobos (ou ridículos) para alguém. É a vida. Pois o limite entre a criatividade e o ridículo pode ser mais tênue do que parece. Basta passar um pouquinho do ponto. Por isso, diante da selvageria do ridículo cotidiano, aprender com o erro é essencial.

* * *

Tiririca, Ratinho Jr., Garotinho e Maluf na Câmara dos Deputados... não é apenas muito ridículo – é desolador que ainda elejamos novos macacos Tião e os velhos ladrões de sempre.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Da música clássica ao heavy metal

DE BAR EM BAR – Bar do Serafim


Uma coisa estranha aconteceu quando travei conhecimento com os primeiros textos de Arthur Dapieve no agora longínquo JB. Me pareceu de cara que já o conhecia desde sempre: apaixonado por música e literatura, botafoguense, criado em Copa (entre a praia, o Mallet Soares, a primeira comunhão na igreja de São Paulo Apóstolo e a pizza de presunto do Caravelle). De lá para cá sua alma refinada só nos fez a todos – a mim e a toda uma geração de que faço parte, à seguinte, a outra e àquelas que continuam chegando – refletir e, na medida do impossível, aproveitar um pouco desse atormentado mundo cruel. Pois bem, é com ele que eu vou ao Bar do Serafim, em Laranjeiras.

Saio do centro já meio em cima da hora (com a recomendação, de meu filho Júlio, de que lhe desse os parabéns por uma contenda clubística, que envolvia o Zico e a tradição alvinegra, num programa de tevê com o mordaz comentarista Renato Maurício Prado, temido jornalista rubro-negro). Hora do rush, metrô entupido, nenhum táxi livre no Largo do Machado, trânsito infernal, ônibus então, Rua das Laranjeiras parada, mas consigo entrar no Serafim exatamente no mesmo instante que Dapieve, morador do bairro, chega pontualmente. Sentamos numa mesa à direita, próximo do balcão. Ele pede um chope escuro, eu um claro.

O Serafim, onde “não é permitido entrar bêbado, sair sim”, é um bar pequeno, aconchegante. No dizer de um dos quadros na parede, um bar “lusitano à Noel Rosa”. Noutro, vê-se Marcelo D2 afirmar, numa matéria antiga, que lá é seu escritório. Um belo escritório, por sinal, com boas cachaças nas prateleiras e pedaços de bacalhau no teto. Entre as fotos expostas, uma de meu convidado com seu Juca, o ex-dono de fartos bigodes, que morreu ano passado.

Pergunto a Dapieve, como frequentador da casa, o que ele recomenda. Começamos com os ótimos bolinhos de bacalhau para acompanhar o chope. De tamanho médio, sequinhos, saborosos. Algumas outras opções de petiscos no cardápio: pastéis, empadas, torresmo, fritas com cebola, alheira portuguesa, morcela. Entre as bem servidas refeições, capa de filé, rabada com agrião e o cozido do fim de semana. Dapieve me conta que um de seus pratos preferidos é a lula à alentejana (arroz, pedaços de lula, paio e lombinho). Fiquei curioso com essa mistura meio extravagante. Mas vai ficar para outra.

Com a ajuda do chope para molhar a garganta e a mente, enfileiramos vários assuntos: primeiro o futebol, claro, o bom trabalho que a diretoria do Botafogo vem fazendo, Loco Abreu, o difícil equilíbrio entre o casamento e a oferta de mil jogos por semana (ele, por sorte, é casado com uma santa que gosta de futebol, a também jornalista Mànya Millen); bares de Copacabana; uma viagem programada ao Japão; Maria Gadu, bandas novas; o prazer de indicar uma leitura; o dilema de ler ou não enquanto se escreve um romance; Bussunda; os perigos de um piripaque em nossa idade (rondando os 50)...

A propósito, para checar a saúde e o colesterol, pedimos a boa porção de pastéis de camarão com catupiry. Súbito, com várias bolachas de chope espalhadas pela mesa, nos damos conta de que já se passaram mais de duas horas e meia. Quando o encontro é bacana passa rápido. Afinal, Arthur Dapieve transita com bom gosto, elegância e conhecimento de causa da música clássica ao heavy metal (os sons que ele vem escutando ultimamente, aliás). Da política brazuca às obras completas de Freud, passando pela Segunda Guerra Mundial. De A a Z. O que faz dele um dos principais cronistas do nosso tempo. Saúde e até a próxima, Arthur.

Bar do Serafim – Rua Alice, 24 A, Laranjeiras (2225-2843)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A consciência negra fora do lote

DE BAR EM BAR – Angu do Gomes


Depois de tudo, a última coisa que Nei me disse, antes de deixar o Largo de São Francisco da Prainha rumo a Seropédica, foi precisamente isto: – Valeu, Santa, vamos em frente! Quando o censo bater na minha casa, faço um passo de samba e mando brasa: sou, com orgulho, afrodescendente! Valeu, saúde pra você e os seus. Até a próxima meu cumpádi.

Terminou quase assim, nesses dias, este casual encontro com o escritor, ensaísta, compositor, sambista e grande figura Nei Lopes. Conheci-o quando participamos de um debate sobre literatura e canção realizado na flip de 2007. O debate em si rendeu menos que o esperado, o que valeu mesmo (e ficou em minha memória, apesar de tudo) foi a tarde que passamos bebendo uma cerveja de responsa e jogando conversa pra dentro. Eu, ele e sua esposa (Sônia) emendamos um papo durante o almoço que se estendeu até de noitinha, estourando até o último minuto que tínhamos para nos dirigir ao local do debate. Pois sim.

Cheguei ao Angu do Gomes no meio da tarde, no tradicional larguinho no bairro da Saúde, região portuária carioca, que ainda respira um Rio das antigas (e alguma malandragem). Entro no pequeno salão, sento-me na fileira da esquerda, atrás de uma mesa com quatro colegas de trabalho, dois homens e duas mulheres. A casa está no final do movimento de almoço, alguns funcionários uniformizados pegam seus talheres e ocupam as primeiras mesas perto do balcão com pratos bem-servidos.

Cabe aqui um esclarecimento: o Angu do Gomes é muito conhecido pelos carrinhos que circulavam pelas ruas da cidade vendendo o prato popular e típico da paisagem carioca. Hoje se vê menos isso. Mas há esse bar e restaurante, que havia sido inaugurado em 1977, e que está de volta ao local que já foi mercado negreiro e se transformou em centro de boemia, palco das primeiras rodas de samba e de capoeira do Rio.

Aqui, além do tradicional angu à baiana, com miúdos de boi, pode-se degustar o angu com algumas variações: carne moída, frango, calabresa ou vegetariano. E os seguintes petiscos: bolinho de feijoada, linguiça mineira, moela, sardinha frita, acarajé, punheta do vovô Basílio (bacalhau imperial, azeitona, cebola e azeite) e, naturalmente, pastel de angu. Entre os pratos, contrafilé, filé de frango e galetinho com guarnição.

Olhando em volta do simpático salão, imagino um senhor sozinho, escrevinhando alguma coisa, numa mesa de canto, à direita. Fixo o olhar e reparo quem é. Penso em não perturbá-lo já que está em atividade. Imediatamente ele também me olha e dispara: – Ô Santa! Há quanto tempo! Tudo bem? Senta aqui comigo...

Não vou nem dizer que o mundo é tão pequeno, porque é mesmo. Estava pensando justamente no homem. Acabara de ler seu romance Mandingas da mulata velha na cidade nova e vim aqui no Angu do Gomes para refletir sobre um trecho do livro que não sai da minha cabeça: “Todo indivíduo é um elo na cadeia da existência, repassando aos seus descendentes o que recebeu de seus ancestrais. A transmissão correta e direta desse saber precisa de tempo e lugar. O tempo é agora. E o lugar é este.”

E esse é o cara. Nei Lopes. Mal me refiz desse ótimo primeiro romance, onde a verdadeira história do nosso povo, não aquela engessada pela história dos poderosos, é contada com liberdade e sabor, e ele já está lançando o segundo: Oiobomé – a epopéia de uma nação. Por falar em sabor, pedimos uma porção de bolinho de feijoada. Veio um pouco gordurosa, poderia ser melhor, mas o prazer do encontro e o angu à baiana, pedido depois, compensaram o pequeno tropeço. E deram sustança à sequência de cervas Original.

Depois que ele se foi, fiquei até na dúvida.

Não sei mais se esse encontro não aconteceu. Ele é tão real... (os quatro colegas de trabalho ainda estão por aqui, alegres e matreiros como adolescentes matando aula). Nei Lopes transformou-se, num único encontro, em amigo, um novo velho amigo de infância. Isso é raro. A questão é que ele fica lá no seu paraíso, lá em seu Lote, num lugar impreciso ente Saracuruna e Seropédica, criando, compondo e vivendo a vida, com sua Sônia. Saúde e até a próxima.

Angu do Gomes – Largo de São Francisco da Prainha, 17, Saúde (2233-4561)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Naquelas tardes de domingo

Se o velho ainda fosse vivo, hoje seria o dia que não ia segurar a onda. Não tenho a menor dúvida. Ele não conseguiria nem olhar de rabo de olho para o telão da tevê. Muito menos torcer – nem contra nem a favor. Além de encher a cara, de gritar com a minha mãe desde cedo e de se indispor com a vizinhança, só conseguiria se lembrar da primeira bola que me deu, aquela tal jabulani. Da primeira camisa do Flamengo que comprou para mim, quando eu ainda nadava dentro da barriga. Das inúmeras vezes em que me levou ao Maracanã. Dos meus primeiros testes, dos meus primeiros treinos. Da primeira foto no jornal, tão moleque que eu era. Da torcida pedindo para eu entrar no segundo tempo. Da primeira vez que fui escalado de saída. Dos primeiros elogios nas mesas-redondas. Da primeira vez em que fui convocado. Das situações em que ele me defendeu no bar quando joguei mal. De como sofreu quando fiquei um ano parado por conta de uma entrada criminosa do zagueiro inglês. Do orgulho que sentiu quando fui vendido para a Espanha, na época ainda o principal mercado. Do quanto fiquei rico e famoso depois da ganhar a Liga dos Campeões. Do sorriso sardônico que exibia quando se falava das minhas mulheres. Do alívio quando retornei, mesmo já meio esquecido e sem dinheiro por conta do meu quarto divórcio. Aí, não ia ter jeito: iria se lembrar também de toda a reviravolta. De como eu fui chamado de traíra aqui e ali, apesar de muita gente boa também ter entrado nessa. Depois, a sua pressão iria escalar o Everest – ou o Fuji, se quiserem – até o ataque fulminante.
Tudo começou no tempo da Copa de 2010, quando ainda usava fraldas. O time do Dunga teve aquela trajetória emblemática que todos estão cansados de saber, mesmo os mais desinteressados. Os jornalistas menos pessimistas viram alguma semelhança com a seleção de 1994, bem longe, lá atrás no século passado, independente do valor de cada uma. Depois veio a Copa no Brasil, em 2014, quando todo mundo pediu a volta do futebol criativo que sempre nos caracterizou. O velho foi ao estádio Mário Filho na final com seu pai, meu saudoso avô Toninho, que dizia que bom mesmo era o Zico. Nada de Neymar, Paulo Henrique Ganso, Alexandre Pato ou Philippe Coutinho, hoje devidamente aposentados e com seus nomes inscritos no panteão da glória dos craques eternos. Já o meu pai juraria que fora de série mesmo eram Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho. Kaká nem tanto, dizia ele. Para mim isso não significa nada. O futebol atualmente é muito diferente, com seus três árbitros, auxílio de várias câmeras, substituições reversíveis, ponto eletrônico, pedidos de tempo, preparação física de 100 metros rasos. Pois bem: exatamente 20 anos atrás foi quando o esporte começou a se tornar o que é hoje. Um show de profissionalismo e tecnologia voltado para a máxima produtividade, controlado por quem pouco entende de bola, mas que domina as ferramentas midiáticas mais modernas e surpreendentes – afinal de contas já se pode até ler os sonhos, não é mesmo?, até isso eles já inventaram.
Nesse momento falta muito pouco para o céu ou o inferno. O coração está quase saindo do corpo. O Sawamura, o japeta que divide o quarto comigo, já desceu. Antes ele havia permanecido horas no banheiro. Eu apertado e ele lá. Muito preocupado com seu cabelo: tintura, xampu, pentes especiais, secador, creme alisante, gel – como se ao menos fosse entrar em campo e não mofar no banco de reservas como uma possibilidade inexistente. Agora ele está na recepção, junto dos outros, todos rindo amarelo, com a cara amarela, tudo na maior disciplina e conforme a hierarquia. Finalmente eles vão jogar contra o Brasil. Ou melhor, nós vamos enfrentar o Brasil, que no placar geral das copas, continua soberano, ainda que hoje, com a fusão de países em blocos econômicos, formados por nações politicamente interdependentes, a confusão seja enorme. Tudo em nome da nova ordem mundial – a meu ver, em função da cara de pau dos mais poderosos. Se eu tivesse de explicar as regras atuais para um marciano eu diria o seguinte: o Japão, ainda o atual dono do mundo, foi quem criou as regras e não quis se associar a ninguém, óbvio, até porque as opções imediatas, as duas Coreias, eram consideradas por ele desastrosas. A gigantesca e promissora China (atropelando por fora) também conseguiu essa prerrogativa., como a segunda força mundial. E também deram um jeitinho os Estados Unidos, mesmo em franca decadência, e a Alemanha, empatadas no terceiro posto. O resto do planeta não teve esta sorte. Graças à nova etapa da globalização, Chile, Brasil e Venezuela tiveram de se concatenar (sendo que alguns chegaram a se lembrar, esquerdistas saudosos, da época em que os presidentes destes dois últimos países, também quando eu ainda usava fraldas, governavam com grande popularidade e, dizem, com alguma fanfarronice, mas sem um interfluxo obrigatório). Assim como tiveram de se acotovelar amistosamente Argentina, Uruguai e Paraguai. E no velho continente, amigo E.T. de Marte? França, Holanda e Bélgica. Aí a coisa, quero dizer a fusão, foi ficando mais sem sentido em termos geográficos, por conta de uma inconveniente hostilidade entre vizinhos. Daí se formou, por exemplo, o bloco Inglaterra, Noruega e Grécia. Quer mais? Portugal, Áustria e Escócia. Espanha e Rússia também ficaram juntas, e se tornariam uma seleção fortíssima candidata em qualquer campeonato. Na África, caro alienígena, devido à pobreza, foram só dois blocos: África 1 e África 2. E por aí vai. Mas, no mundo do futebol, todos perceberam que isso não iria funcionar, porque as potências no ex-esporte bretão são por merecimento Brasil, Itália e Argentina, e não Japão e China e EUA e Alemanha, apesar da grande tradição desta última. Daí se voltou à disputa como sempre foi, antes mesmo de ter sido implantado o novo modelo. Para não deixarem tudo na mesma, os poderosos, sempre sob o pretexto de reaquecer a economia, e em nome da nova ordem mundial, criaram o regime de cotas das nacionalidades em leilão – do qual sou um dos principais atores. Portanto, no placar direto entre os dois países que jogam logo mais (pensando-se, claro, no mapa-múndi de antigamente): Brasil 7 x 2 Japão. Este é o escore de Copas do Mundo que promete ser revertido pelos japoneses muito em breve, meta para a qual eles contam comigo, a partir da data de hoje: 13 de julho de 2034. Afinal sou um dos atletas estrangeiros considerados classe A pela FIFA que podem atuar por outras seleções, numa autêntica venda de nacionalidade. Tudo, claro, para aumentar o consumo e reaquecer a economia, seriamente abalada depois dos golpes cada vez mais duros que a natureza tem aplicado ao planeta. Fenômenos como o recente terremoto no Ceará e o veranico no Pólo Norte mostram que ela agoniza mas ainda vive – e até nos oferece pequeno troco aos muitos séculos de descaso, ganância e egoísmo da nossa gente.
No finalzinho da partida, Matsumura avança pela direita, tabela com Kobayashi, passa pelo ala esquerdo brasileiro Felipe Galvão Mascarenhas de Moraes e Silva, vai até a linha de fundo, e cruza pelo alto no meio da área; O volante brazuca Vítor Sombra tenta cortar de cabeça e fura espetacularmente; a bola sobra limpa na meia-lua para o argentino Federico Barros (outro atleta cooptado pelo Japão, como eu) que, com uma visão de jogo diferenciada, entre dois adversários, o ala direito Aldo Porto e o meia Luís Mocó, enfia para mim que, de voleio, emendo com violência sem tempo do zagueiro verde e amarelo Marçal Machado chegar junto, nem tampouco do goleiro Ricardo Alberto esboçar qualquer reação, estufando a rede; logo depois me vejo sufocado por Maki, Matsumura, Sato e os demais japetas numa pirâmide amarela – é tudo o que consigo mentalizar, conforme eles me ensinaram, enquanto encaro com certo desprezo (unicamente por fora) meus compatriotas no túnel de acesso ao gramado. Os brasileiros, por sua vez, guardam para mim um risinho totalmente irônico e irritante. Em seguida, os dois times vão ficar perfilados e ouvir as respectivas canções transnacionais, mixadas por famosos DJs a partir dos hinos dos países de antigamente. É isso. Ainda penso no meu velho e em como é bem melhor que ele não esteja por aqui. Saudades dele naquelas tardes de domingo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Fome

"Hora da boia. Ensina-nos a todos, à guisa de refinamento e cultura, que há um melhor uso para a boca do que deixar passar por ela opiniões pessoais."
(W. Faulkner)

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Três novas razões para uma vida plena

A SOMBRA DO FAQUIR – 3


Antigamente se dizia que para que uma vida valesse a pena ser vivida o indivíduo deveria, antes de expirar sua passagem pelo planeta, fazer três coisas: 1- plantar uma árvore; 2- ter um filho; 3- escrever um livro. Ações que justificariam uma existência. Com o império do descartável, com a revolução da tecnologia da informação e com a alucinada velocidade subjetiva do tempo, tais requisitos não são mais primordiais. Ficaram defasados.

Hoje não é mais necessário plantar uma árvore. A consciência ecológica e o sentido de perenidade (que não dura mais uma vida inteira mas até o próximo verão) podem ser aplacados com o apoio virtual a campanhas como salvem as baleias e não ao desmatamento da Amazônia, e ainda com pequenos grandes gestos como a utilização de sacolas retornáveis no lugar das sacolas de plástico nas compras do supermercado. Tudo em nome do futuro.

Hoje não é mais necessário ter um filho para se dar continuidade a uma cadeia hereditária. Como a família não possui mais um formato único, padrão, é possível ser o pai (na prática) do filho (de outro casamento) da sua atual mulher. E vice-versa. Com muito mais tempo de convivência e de afeto do que os progenitores reais em boa parte dos casos.

Hoje também não é mais necessário escrever um livro. Num momento em que cada vez mais se questionam mídias como o livro impresso e o CD (este praticamente moribundo), o invisível espaço virtual para troca e aquisição de conhecimento e fruição estética é o caminho ladeira abaixo da humanidade atordoada e dispersa em mil e um estímulos que nos liberam da experiência tátil e do contato físico.

Portanto, diria que, atualizando o ditado popular, três possíveis razões contemporâneas para validar uma existência neste início de século 21 seriam: 1- participar de um reality show (como se sabe, hoje esse tipo de programa está presente em praticamente todos os canais de televisão e sobre os mais variados assuntos: anônimos que querem virar celebridades, bandas de rock, chefs de cozinha, casais gordinhos, quase famosos, cães problemáticos e por aí vai); 2- casar no mínimo três vezes (o que gera uma infinidade de subfamílias que se interpenetram e garantem amor e ódio para sempre); 3- escrever um blog (qualquer um pode ser escritor ou jornalista e garantir seu lugar na posteridade virtual).

* * *

Segundo tais requisitos, a minha vida estaria ainda a 2/3 do ponto de poder ser considerada plena – atinjo tão-somente o último item e mesmo assim a custa de muita resistência e indecisão quanto à minha real aptidão para essa modalidade de diário pessoal e público.

Num exercício de imaginar o que significa para mim uma vida bem vivida diria que é preciso: 1- antes de mais nada, fazer o que se gosta; 2- ter ao menos um grande amor, um grande amigo ou um grande parente; 3- ter sempre dinheiro para comprar livros, discos e, digamos, algum cachorro engarrafado.

* * *

Esta eu ouvi numa das últimas edições do extraordinário programa Coisas pelas quais vale a pena viver, da atriz Priscilla Rozembaum e do ator, dramaturgo e cineasta Domingos de Oliveira, que passa no Canal Brasil. A respeito do último dia da temporada da peça Moby Dick no Teatro Poeira, no Rio, mestre Domingos mandou: “Sabe qual é a forma mais interessante de sabedoria? A loucura controlada.” É isso aí.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Descerebrai-vos

“Uma vez admitido que a vida possa guiar-se pela razão, aniquila-se a possibilidade da vida.”
(Leon Tolstoi)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Olhos (e boca) de Facebook, ouvidos da Igreja Universal

A SOMBRA DO FAQUIR - 2

A propaganda geralmente consolida e traduz tendências existentes na sociedade. Não costuma criar novas bossas, mas, ao contrário, capta o que está rolando – às vezes, dependendo da sensibilidade do publicitário, até mesmo apresenta como novidade o que já é pretérito.

Dois comerciais recentes me chamaram muito a atenção. No primeiro, uma família se prepara para sair de férias. Cheia de bugigangas, entra no carro, finge que vai zarpar e volta para a garagem. Na cena seguinte, vemos a família toda em frente à tevê, curtindo a mil. Férias ideais: na segurança e no conforto do lar, controle remoto na mão e dezenas de canais do mundo inteiro. O fim da picada.

No outro, um comercial de telefonia, o pai e o filho adolescente conversam, este, como aborrescente típico, desqualifica o esforçado provedor, que exulta ao conseguir checar seus e-mails pelo celular, transformando-o, um homem de seus 40 e poucos anos, numa peça de museu ao lhe informar que e-mail já era, o negócio agora são as redes sociais. (No final o pai dá o troco, quando o filho mostra a foto da namorada no celular: “namorar... que coisa mais careta!” – mas isso não importa).

Conjugados, os dois comerciais parecem nos dizer: experiência real de vida é hoje algo pouco importante; fique numa boa que é possível conhecer o mundo inteiro e falar com todas as pessoas possíveis sem sair do seu canto. Na mais completa solidão compartilhada.

* * *

Depois de relutar bastante, de ignorar solenemente Orkut, MSN e Twitter, entrei há pouco para o Facebook. Alguns amigos e minha mulher me convenceram de que este seria outra coisa, mais adaptável ao meu temperamento esquizóide, afeito à reclusão, à leitura e ao silêncio (cada vez mais) e simultânea e paradoxalmente (para alguns) ainda fascinado pelas ondas mundanas que quebram na praia da inquietude. Lá no FB, segundo eles, poderia postar meus textos, discutir idéias com pessoas afins e ser feliz.

Pois bem. Em um mês e meio de Facebook, constato o óbvio: as possibilidades de se atingir o maior número de pessoas são claramente maiores do que através do e-mail (o aborrescente do comercial de alguma forma estava certo). Mas por outro lado observo que é uma tendência muito grande usar o Facebook principalmente para uma comunicação mais direta, rasteira e cotidiana. Por exemplo: fulano diz: “Amarelo!” ou “Que frio!” – e imediatamente pipocam comentários a respeito do que talvez só interessasse aos envolvidos. A questão é que pelo lado positivo se pode comunicar com muito mais gente ao mesmo tempo do que o tempo de cada um permite se a comunicação fosse feita individualmente. É muito fácil, por isso, saber quem está de ressaca ou acordou apaixonado. A exposição espontânea é espantosa.

Percebo ainda que a sociabilidade virtual é bem relativa. Tirando as exceções fortuitas dos famosos ou muito populares, só tem olhos (e boca) para você praticamente quem já é conhecido. Agora, o maior teste é para a ansiedade e a insegurança de checar a todo momento se alguém curtiu ou fez algum comentário a algo postado. Isso é terrível. Sem falar nos que nos humilham com milhares de amigos. Eu, por enquanto, estou nos meros 150. Mas vou continuar insistindo, lentamente. Alguém aí está me vendo?

* * *

Um amigo me conta revoltado que se instalou na loja embaixo de seu prédio uma Igreja Universal. Ele mora no segundo andar. Ao ouvir a barulheira dos infernos, vindo dos cânticos e dos Glória a Deus de praxe, foi reclamar com o porteiro. Ao que este comentou: “Pior é que eles pensam que Deus é surdo.”

Um poeta, o porteiro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Um pé-sujo diferente

DE BAR EM BAR - REBOUÇAS

– Bota uma aí pra queimar a garganta.

O atendente serve uma dose generosa de 51.

– Posso cair dentro?

O trabalhador humilde vira tudo e faz aquela careta. Normal. Esta é uma cena que poderia ter acontecido em qualquer pé-sujo da cidade. Mas foi aqui no Rebouças, um pequeno grande boteco. Enquanto espero meu convidado chegar, sento-me num dos poucos bancos do balcão, peço uma Antarctica e observo o ambiente.

O bar é de dia uma pequena porta na Rua Maria Angélica. À noite ele cresce com mesinhas pela calçada. Nas prateleiras acima do balcão, noto garrafas de vinho que fogem ao padrão pé-sujo. Como também em relação às cachaças, aqui tem marcas como Lua Cheia, Germana, Magnífica, Salinas, Bento Velho, Chico Mineiro e Rainha do Vale. Não é pouca coisa. Um dos fregueses beberica uma dose de Red Label, ao lado do trabalhador que virou a 51.

– A música tá muito careta! Cadê os porras-loucas de hoje?

Quem fala é um senhor jovem, mais jovem do que muita gente que tem 18 anos. Discorre também sobre eleições, elogiando o candidato socialista Plínio de Arruda Sampaio, sobre vendedores de picolé no Pacaembu e seu método original de venda e ainda sobre a idade avançada das aeromoças atualmente. Interessante figura. Descubro depois que se trata do pianista Guilherme Vergueiro (não sabia como ele era). Mas eis que chega ao Rebouças meu convidado Toni Platão, que, antes de me dar um abraço, para pra falar com todo mundo. Aqui ele está em casa.

Toni Platão é, sem nenhum favor, um dos maiores cantores do Brasil. Num país que prima por excelentes cantoras, onde nasce uma diva a cada semana, Toni é quase um artigo de luxo. Deveria estar sendo disputado a tapa pelas gravadoras em crise. Mas a maioria delas sofre de miopia aguda. Toni Platão, gaiato, sempre que me encontra se refere à minha canção (em parceria com Frejat e Maurício Barros) Por você como “aquela canalhice”. Em seguida emenda: “Mas a Deborah adora”. Deborah é sua mulher, a coreógrafa Deborah Colker. Ainda bem que a Deborah adora.

Sentamo-nos numa mesinha na calçada. Para acompanhar a cerveja e o bom papo, peço uma empadinha de camarão. Veio ótima. Peço mais uma. Outras opções da casa: bolinhos de bacalhau, de camarão com catupiry, pastéis de carne, queijo, camarão e carne seca, sanduíche de carne assada, cachorro quente, presunto Parma. Todos os petiscos expostos parecem gozar de boa saúde.

Como não poderia deixar de ser, o assunto gira em torno de futebol, especificamente sobre como equilibrar o casamento e os 1500 jogos que passam na tevê, música digital (“tá faltando o discurso”) e filhos eternos. Pelo celular, Platão monitora o estudo do seu Antonio Bento, de 10 anos, que tem teste de matemática no dia seguinte. E ainda cumprimenta a nova leva de frequentadores, agora o turno da noite. Ele conhece desde o negão que coordena o ponto de táxi em frente, o Lafond (“aqui todos têm apelido”), até a florida mesa ao lado, recheada de gatas extraordinárias, como diria Caetano. Vai começar o jogo da nova seleção brasileira. Vamos para o interior do bar. Tudo certo no Rebouças – e no campo, com Ganso, Neymar e Pato. Saúde e até a próxima.

Bar Rebouças – Rua Maria Angélica 197, Jardim Botânico (2286-3212)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Santa utopia

“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”

(Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Bigodes, chapéus e um Robin Hood pós-moderno

A SOMBRA DO FAQUIR - A QUEM INTERESSA?


Inauguro hoje nesse espaço uma crônica freestyle, A Sombra do Faquir. Como a De Bar em Bar da vez ficou adiada para a outra semana por conta da agenda do convidado (e da chuva), respirei fundo, deixei a preguiça sofrendo na janela e pronto. Escreverei sobre o que chamar a atenção, sem mote prévio, como é da natureza da crônica, esse gênero brasileiríssimo. Ela aparecerá ao lado dos pequenos textos, citações, poemas e da própria De Bar em Bar.

Abs & bjs
M

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BIGODES E CHAPÉUS

Sempre achei bigode um lance esquisito. Alguém botar um tufo de cabelo embaixo do nariz – e barbear o resto da cara. É o tipo de acessório que combina bem em poucos casos. Há bigodes clássicos que falam por si: Hitler, Sarney, Carlitos, Rivelino (na luta entre o bem e o mal deu empate). Kurt Vonnegut. A partir da minha recente obsessão por este escritor, de quem já li uns dez livros seguidos, enfileirados, começando justo pela obra-prima Matadouro 5, e tenho, graças a Deus, ainda mais uns oito na estante (quase tudo comprado em sebos), resolvi tentar mais uma vez um improvável bigodon. Isso mesmo, em homenagem a Kurt Vonnegut, o genial escritor bigode que até pouco tempo eu achava que era apenas um autor de ficção científica. Não é. É um escritor que me bateu fundo e dos grandes do século 20.

Bem, o bigode não deu lá muito certo. Meu cabelo já ficou grisalho e ralo no topo (é, amigo; velhice é ladeira abaixo). E o bigode é meio louro, meio branco. Tentei insistir, olhando-me no espelho o tempo todo para vigiar o crescimento dos pelos e tal e coisa. De início achei que estava legal, junto com uma barbicha de leve, que já tinha usado antes. Mas aí comecei a perceber na rua, na foto do jornal, no show moderninho no Oi Futuro, na propaganda de cerveja, que bigode, antes uma coisa meio cafona, agora é up-to-date. Sinal de modernidade. Comecei então a reparar no formato falho do meu bigode crescendo. E depois ainda que a minha mulher fez uma referência sem nenhum entusiasmo a respeito de minha dita homenagem (que ela não sabia ser uma homenagem), rapei fora. Que coisa mais ridícula, bigode.

* * *

Ocorre comigo algo parecido em relação ao chapéu (cujo uso é também uma boa estratégia para deletar virtualmente a carequice, estratégia digna até, se comparada a perucas e implantes que parecem capim). Comprei um em Buenos Aires há quase um ano e nunca o usei apesar de ser muito bonito. Boné de vez em quando rola. Chapéu coco também já usei. Mas chapéu, chapéu, ainda mais depois que virou moda entre todas as bandas modernas e celebridades, fica difícil. E, assim como o bigode, também não cai bem em qualquer um. Sabem disso e usufruem da benesse meus amigos músicos Rodrigo Santos e Humberto Barros (este então tem toda uma persona cujo chapéu é parte indispensável. Fico até curioso para saber como ele é sem – sem nenhuma segunda intenção, por favor). Mas essa febre de chapéu já passou um pouco e ainda vou insistir. Dessa vez, em homenagem a ninguém. Ou melhor, em homenagem a Tom Jobim. Isso. Nada como uma motivação.

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UM ROBIN HOOD PÓS-MODERNO

Ouvido numa esquina do Bairro Peixoto, de um menino de seus 12 anos, num grupo de moleques de rua: “Só vamos roubar se for de quem tem dinheiro. Roubar de quem é pobre não tá com nada.” A vida anda tão dura que quase bati palmas.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O homem quase

Quando foi libertado por bom comportamento, em 2037, temeu pela reação violenta das pessoas e por sua vida fora das grades. Mas o mundo já não sabia mais quem ele era.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Criativo, delirante... e sóbrio

DE BAR EM BAR - CERVANTES

Já estava mais do que na hora. Fui nesta semana àquele boteco que é diretamente associado ao mais célebre bardo de Copacabana, figura mitológica da boemia carioca Rio 40 graus. O bar, claro, é o Cervantes. E o personagem, mais claro ainda, é o compositor e escritor Fausto Fawcett. Porém agora com um detalhe importantíssimo: Fausto parou de beber. Fui lá me encontrar com ele.

Quando chego, por volta de 16h, Fausto já estava lá, encostado no balcão, traçando um sanduíche com guaraná, e conversando com dois amigos sobre uma de suas maiores paixões: o Fluminense, que anda muito bem na foto, um dos líderes do Brasileirão, mas que pode perder seu técnico, Muricy Ramalho, para a seleção brasileira. Não se pode ter tudo. (Eu, como botafoguense que sou, sei bem disso... Reestreia, Maicosuel! Volta logo, Loco!)

Depois de meia hora, os amigos se vão e eu e Fausto vamos para o salão interno. Há nesse momento, apenas mais duas mesas ocupadas, uma com pai e filho almoçando tardiamente, outra com duas moças tirando fotos publicitárias de um sanduíche, realmente cinematográfico, da casa. Peço meu segundo chope e Fausto, outro guaraná.

Fausto Fawcett está mais magro e muito bem disposto. Entro logo de sola no assunto que não quer calar: como é nunca mais acordar de ressaca? Com o bom humor que o caracteriza, ele conta que na verdade não havia propriamente ressaca, pois, durante uns 25 anos, sua vida no Triângulo das Calcinhas, ou na “Bukowskaia”, foi um eterno estado de embriaguez, que, parece, passou voando. E acrescenta que parou porque teve que parar: o médico disse que era isso ou o transplante de fígado ou... Mas ainda bem que ele preferiu ficar mais um bom tempo por aqui, nos brindando com sua verve e seu texto inspirado. Porque muito mais do que o poeta das louras, Fausto Fawcett é um inventor de linguagem.

Enquanto passam garçons e o reverenciam, o papo corre solto. Falamos um pouco de tudo: Dunga, seleção espanhola, surfe de peito nas ondas de Copacabana na década de 1980, beber para suportar (“a vida é isso?”), indiferença, capatazes de humanista e música digital, entre outras coisas. Enfileiro um chope atrás do outro e pergunto se isso não o incomoda. Ele, com toda a calma, diz que está tranquilo. Peço o tradicional sanduíche de filé com queijo e abacaxi para acompanhar.

Como se sabe, o Cervantes é o paraíso dos sanduíches. Aqui tem de mortadela, salsichão, patê com abacaxi, linguiça calabresa, rosbife, fiambre de peru, filé de frango e muitos outros. Mas há também pratos como churrasco à campanha, brochete de camarão, frango ao alho e óleo, língua com salada de batata, miolos à milanesa e sopas de aspargos e de tomate.

O tempo passa voando e Fausto precisa ir embora. Poderíamos continuar conversando fácil. Antes de sair, conta que em setembro publicará seu quarto livro, Favelost, e em seguida o primeiro infanto-juvenil, Lourinha levada. Fico para tomar a saideira. E me sinto feliz pelo amigo, que está leve, inteligente e mordaz como sempre e pronto para escrever novos textos que o desafiem além e aquém do território babélico de Copa. Ele pode. Saúde e até a próxima.

Cervantes – Rua Barata Ribeiro, 7-B, Copacabana (2275-6147)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O próximo passo

“Um passo para trás depois de se ter tomado o caminho errado é um passo na direção certa.”
(Kurt Vonnegut)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Com estacionamento de gaiolas e pudim

De Bar em Bar - Varnhagem

Outro dia uma leitora do JB me pediu que fosse mais à Tijuca e me enviou uma lista, muito boa por sinal, de botequins do bairro. Antes que ela pensasse que tenho algo contra a área, me apressei em esclarecer que já fiz a coluna em dois dos muito bons bares da região: Salete e Otto. E, acima de tudo, tenho pessoalmente uma relação de carinho com a Tijuca. (Conforme a teoria de um amigo meu, todo carioca que se preza tem ou teve uma namorada tijucana. Faço jus, portanto, ao meu crachá.)

Fui então dessa vez a um conhecido bar na Praça Varnhagem, o famoso bar da dona Natalina, com o mesmo nome do lugar público. O Varnhagem é daqueles botecos para a gente se sentir em casa. A matriarca da família Rosário, que bate ponto no local diariamente há mais de 50 anos, é quem supervisiona a cozinha e atende os fregueses com zelo e bom humor. Fico a imaginar se isso lhe fosse retirado – a vida perderia todo o sentido. Mas essa hipótese não existe, ainda bem.

Para abrir peço uma cerveja Original a fim de fazer par com o famoso bolinho de bacalhau da casa. Realmente, a fama não é em vão. Mesmo sendo um pouco cedo para a atividade boêmia, por volta de meio-dia, o petisco e a cerveja gelada caíram muito bem. Outros tira-gostos que também valem a pedida: croquete de carne e vaca atolada. À minha volta, alguns trabalhadores almoçam e veem televisão. Apesar de ser um pouco pequeno, o boteco de azulejos brancos e rosa e de alma lusitana tem espaço para todos.

Cheguei ao ponto onde queria. Aqui têm vez até os passarinhos, amigo leitor. Fico sabendo que nos fins de semana frequentadores trazem suas gaiolas, penduram-nas numa barra de ferro e tomam sua cervejinha tranquilamente. Não é à toa que o Varnhagem é conhecido também como o bar dos passarinhos. É ou não é sensacional um estacionamento de gaiolas? (Mesmo para quem, como eu, prefere passarinho solto.) Quem imagina que o Rio de hoje é só violência e terra de ninguém ainda não esteve por estas bandas. É uma cidade que não existe mais se recusando a ir embora de vez.

De tanto olhar as pessoas ao redor almoçando com gosto, a fome aperta. Resolvo embarcar nessa e peço o filé mignon suíno com salada de batata, arroz, feijão e farofa. Enquanto isso, observo um rapaz com ares de artista antenado, com seus piercings e boné modernos, a conversar com dois senhores de terno e gravata. Penso logo que é o tradicional caso em que o artista vai ao mecenas com o pires na mão e o coração na boca.

Porém me surpreendo inteiramente quando ouço o rapaz expor suas ideias sobre marketing e negócios com muita propriedade e total atenção dos engravatados. O que comprova o óbvio: imagem nem sempre corresponde ao que de fato é. Tal raciocínio serve perfeitamente ao Varnhagem, que a princípio até pode parecer um pé-sujo comum. Depois de degustar o prato delicioso, ainda me permiti uma coisa raríssima para mim em boteco: comer um doce. E o pudim de leite veio tão bom que me fez levitar feliz até o metrô no caminho de volta. Saúde e até a próxima.

Café e Bar Varnhagem – Praça Varnhagem, 14-A, Tijuca (2254-3062)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Porque ninguém é de ferro...

“Uma sesta clarifica maravilhosamente a cabeça para além de conceber uma renovada energia. Imagino que cerca de metade das pessoas do mundo não conseguem fazer uma sesta sem se sentirem depois um pouco obtusos, mas para aqueles que conseguem, uma sesta é uma poupança e não uma perda de tempo.”
(Patricia Highsmith)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Viva a besteira

DE BAR EM BAR - Astor

Nesta semana fui a um botequim novidade. Além de ser um dos poucos que temos à beira-mar (sem contar os muitos restaurantes de Copacabana), é também um boteco de paulista, sem nenhum preconceito à cidade da garoa e do trabalho eficiente. Fui ao Astor, ali onde era o Barril 1.800, no início de Ipanema, com S. e os queridos amigos Mel e Maurício Barros. Uma saída com este casal é sinônimo de comer e beber bem e jogar ótima conversa fora – além de quase sempre fecharmos o bar.

Chegamos por volta de 19h de sábado. A varanda, que costuma ser a preferência, estava cheia. No amplo e elegante salão interno havia algumas poucas possibilidades de mesa, mas também já estava bem ocupado. O pouso ficou em frente ao extenso balcão, no extremo das mesas, e o mais perto das poltronas, no ambiente anexo para espera, e de parte da cozinha aberta ao público.

No início é preciso quase implorar aos garçons que notem nossa existência (talvez por não acharem que iríamos consumir; ou seja, cara de pobre). Mesmo depois do contato com o maître, ainda mantiveram por um tempo a pose blasé. Mas depois, capitaneados pelo garçom Ronaldo, justiça seja feita, tudo melhorou. Afinal, São Paulo não pode parar... e o bar também não.

Abrimos os trabalhos com ostras, os afrancesados mexilhões com batatas fritas (moules et frites) e chope cremoso da Brahma. As ostras vieram excelentes, frescas e saborosas. O chope muito bom, com a pressão na medida. Os mexilhões em molho de cerveja, numa porção não muito generosa, estavam corretos, mas não chegaram a empolgar. Pedimos então bolinhos Pirajá, que vêm a ser bolinhos com recheio de abóbora e carne-seca. Vieram ok para menos.

Outras opções do cardápio: pastéis, empadas, caldinho de feijão, omeletes, mexidinhos de rabada, polenta e agrião, de frutos do mar e de linguiça com gorgonzola. Entre os pratos, pode-se escolher entre filé com queijo Palmira, camarão com chuchu, picadinho Astor, linguado à Meuniére e frango Balthazar.

Observando ao redor, percebo um clima de azaração light. É um lugar para ver e ser visto. Logo identifico uma mesa com três amigas à La Sex in the city ali, outra mesa com dois senhores com ares de burgueses divorciados perto, passam para lá e para cá algumas modeletes anônimas, um ator de novela das oito, outro de Zorra Total, e uma turma bem mais jovem, que surge para se aglomerar na área das poltronas. A casa aumenta o som ambiente. U-hu!...

Depois dos primeiros chopes, passamos para o vinho (menos a Mel, que continuou com sua caipirinha de lichia com vodca Absolut). Começamos com um Alamos (Malbec), mudamos para um Tília (Shiraz/ Malbec) e repetimos a dose deste, ambos argentinos. Para continuar nos belisquetes, pedimos almôndegas picantes, muito boas, e em seguida besteiras à milanesa, nada mais nada menos do que pedaços de bife à milanesa com queijo emental presos no palito.

O que poderia ser só um item coadjuvante no pé-limpo bom, bonito e caro acabou sendo o destaque gastronômico da noite. Inclusive com grande aceitação nas outras mesas (o que prova que simplicidade tem o seu valor também nos lugares mais requintados). No boteco paulista com vista para o mar, a besteira foi o astro. Ah, sim: fechamos o bar mais uma vez. Saúde e até a próxima.

Astor – Rua Vieira Souto, 110, Ipanema (2523-0085)