sábado, 27 de março de 2010

O passado

“Mesmo o passado se faz às vezes tão presente que já nem sei se fui ou se sou, tenho que buscar o espelho para encontrar o momento exato e, nele, a minha face: se tenho mesmo esta barba ou se a uso apenas como disfarce, como fazia em criança ou como faz a criança dentro de mim.”

(Campos de Carvalho, A chuva imóvel)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Perdão para essas pessoas ruins

DE BAR EM BAR - Estação Largo do Machado


Três amigos conversam no balcão. O papo ainda é aquele que tem movimentado a cidade nesses últimos dias:

– Ele vai casar com a loura. Só não sabe se é com a mulher ou com a cerveja.
– O cara não pode se entregar.
– Isso pra virar corno é rápido!
– Faz besteira e depois fica deprimido...
– Não é só bebida não.
– Eu ouvi dizer que é só manguaça.
– Eu acho que ele bota o nariz. Quando ele chega no morro é escoltado pelos vagabundos. Dois dias fora do ar.
– Dunga tá com muito medo.
– E o Ronaldinho Gaúcho?
– Pode jogar agora mais que Pelé. Dunga perdeu a confiança. Ele deu uma festa de três dias num hotel.
– Essa grana toda que rola é que prejudica esses caras. Olha só o professor universitário que estuda à beça e não ganha nada.
– Mas o futebol é uma espécie de arte.
– Tem jogador da seleção que na minha pelada não ia nem ser escolhido. Hoje tem só um ou outro craque, o resto é tudo igual. O próprio Adriano é bom jogador, mas não é craque.
– Ronaldinho Gaúcho é craque.
– O que ele faz é palhaçada com a bola. Craque era o Zico.

Fui ao Estação do Largo do Machado e o assunto em questão vai perdurar até a convocação, em maio, da seleção brasileira para a Copa. Quando cheguei, por volta das 19 horas, o bar estava cheio, havia apenas uma mesa livre, perto do balcão, esperando por mim.

Sento-me e peço o primeiro chope. O Estação fica numa das pontas do Largo do Machado. É um trecho em que se observam os carros e ônibus vindos da Lapa pela rua Bento Lisboa em direção ao bairro das Laranjeiras. Há muitas buzinas. Em frente, um resquício de calma no canto da praça, com aposentados jogando baralho. À minha direita, a igreja Nossa Senhora da Glória.

Nas outras mesas, casais, duplas de amigos e alguns solitários: além de mim, uma senhora falando no celular e uma mulher gorda jovem, de rosto bonito e fumando sem parar, repara em tudo à sua volta com olhos salientes. Peço uma porção de tremoços.

Além dos tremoços, que vieram sem muita emoção, há os seguintes aperitivos: salaminho, jiló, picanha suína fatiada, costelinha de porco com aipim frito, pastéis, bolinho de bacalhau. A casa oferece também pratos como: filé à piamontesa, medalhão de chester com arroz e purê e truta grelhada. Na parte interna, algumas pessoas jantam no salão refrigerado.

Peço ao eficiente e discreto garçom mais um chope e uma sugestão:

– Leão Veloso ou creme de palmito? (Para quem não sabe, sou fanático por palmito.)
– Leão Veloso é mais forte, senhor.
– Uma tigela de Leão Veloso então, por favor.

Volto-me novamente para o monotemático balcão e a língua maldita do boteco.

– Joga bola?
– Futebol hoje é esporte violento. Dou uma caminhada e quando estou me sentindo muito bem arrisco uma corridinha.
– Mas não com esse sol, né.

A tigelinha veio ok. Apesar da região movimentada e de passagem, o local do Estação Largo do Machado é um recuo no caos. E o bar é simples e honesto. Tem hora que não precisa mais do que isso. Saúde e até a próxima.

Estação Largo do Machado – Rua Bento Lisboa, 184, Largo do Machado (2508-7180)

segunda-feira, 15 de março de 2010

Mea culpa de Nick

Há poucas semanas expus aqui uma pequena teoria do escritor Nick Hornby que dizia respeito à superioridade da literatura, como numa luta de boxe, sobre qualquer outra forma de arte. Mas a ideia foi rapidinho desbancada pelo próprio autor:


“Mês passado falei bastante sobre como os livros eram melhores do que qualquer coisa – como um livro decente ganharia de qualquer coisa, qualquer filme, pintura ou música com que nos déssemos ao trabalho de comparar. (...). Li quatro livros muito bons este mês, só que, mesmo assim, meus destaques culturais das últimas quatro semanas não foram literários. Fui a duas exposições maravilhosas na Royal Academy; vi Reyes marcar seu primeiro gol pelo Arsenal contra o Chelsea; e alguém me enviou um drible da mais alta qualidade marcado pelo Springsteen, um show de 1975, e um cover de 'I want you'. Como eu disse, adorei os livros que li este mês, mas quando Reyes fez aquela bola tocar no fundo da rede, subi pelos ares. Bem, [o livro de] Patrick Hamilton não me fez sequer mover os pés. Fiquei sentado grande parte do tempo. Então voltemos às vacas frias. Livros: muito bom, mas não tão bom quanto as outras coisas, tipo gols ou dribles.”
(Nick Hornby, Frenesi Polissilábico, p. 69-70)

sexta-feira, 5 de março de 2010

Com crédito, apesar de tudo

DE BAR EM BAR - Adega do Pimenta


Tenho sido um pouco relapso com alguns de meus bons amigos. Além da vida itinerante de bar em bar, ando mergulhado na criação de uma história para um segundo romance. Sei, claro, que a eterna falta de tempo não é uma condição exclusivamente minha. E por mais que a correria cotidiana seja um fenômeno identificado com a contemporaneidade, isso também não vem de hoje. Vejamos, por exemplo, o que dizia, há 150 anos, Tolstoi em sua monumental obra Guerra e Paz:

"À noite, ao chegar em casa, anotava as quatro ou cinco visitas ou encontros obrigatórios de hora marcada. O mecanismo da vida, a melhor maneira de dispor do tempo, absorviam a maior parte de sua energia. Não fazia nada, não pensava em nada e nunca tinha tempo."

Então, depois de ter furado vergonhosamente alguns encontros, fui dessa vez com meu amigo e consultor para bares no Centro e adjacências, Marcos André Góes, o vulgo Dudu, à Adega do Pimenta. Portanto numa terça-feira dessas pegamos o bondinho e subimos para Santa Teresa. Não é novidade para ninguém que o calor anda infernal. Mas me surpreendi com a temperatura de sauna às 19 horas, até no bucólico bairro.

A Adega estava vazia. Ou melhor, tinha apenas uma mesa ocupada com uma menina de óculos que tomava uma cerveja long neck. (Depois apareceu um gringo para jantar.) Ficamos numa mesa encostada na parede, perto da porta da rua. O pequeno bar é simpaticamente decorado com bricabraques e referências etílicas, como canecas, garrafas, matérias emolduradas sobre a casa, pôsteres e até notas de dinheiro de várias partes do mundo.

Como chegamos esfomeados, junto com o primeiro chope pedimos logo dois croquetes de carne. Vieram ótimos, tanto o bem tirado chope da Brahma quanto os petiscos. Embora o nome da casa possa sugerir uma procedência portuguesa, a especialidade aqui é a cozinha alemã (“Pimenta”, me ensina o Dudu, vem de Pfeffer, o primeiro dono, um alemão).

Outras opções do cardápio: língua com aspargos, truta com molho de mostarda, rollmops e filé de arenque. E também os pratos: kassler, eisben, goulash, pato ou coelho assado e joelho defumado. Aos finais de semana é servida uma feijoada alemã (com feijão branco, kassler, salsicha branca, lombo, batata, cenoura e arroz). Além do chope claro, tem ainda o escuro e bebidas diversas como o clássico steinhager.

Estava tudo bem (inclusive o som ambiente perfeito) até pedirmos um salsichão defumado. Veio saboroso, porém excessivamente apimentado. Só então descobrimos que o ar condicionado não estava ligado e, como apenas os ventiladores da casa não davam vazão aos calores internos e externo, tivemos de fazer o pedido óbvio. Francamente.

Em seguida, escolhi um steak tartar (carne crua temperada). Mais uma vez não demos sorte – estava muito salgado. Dudu suava em bicas. Decidimos pedir a conta. Com uma certa tristeza, digo que a Adega do Pimenta dessa vez não foi bem aquilo que esperava. Mas não há de ser nada. A casa tem crédito: já estivera aqui antes e tudo saíra às mil maravilhas. Saúde e até a próxima.

Adega do Pimenta – Rua Almirante Alexandrino, 296, Santa Teresa (2242-4530)