terça-feira, 21 de junho de 2011

Assim foi se lhe parece

Era uma vez um esporte jogado com os pés que foi inventado na Inglaterra (embora haja registros do jogo, numa forma bem rudimentar, que remontam à China de antes de Cristo) e foi trazido para o Brasil por um paulista chamado Charles Miller, no fim do século 19. Convencionou-se estipular que este foi o início de tudo para nós brasileiros: as bolas que Miller trouxe da Inglaterra em sua mala no ano de 1894. O esporte, porém, não se disseminou de imediato, uma vez que seus praticantes iniciais eram apenas os filhos da alta burguesia. Os esportes mais populares até então na capital do país, o Rio de Janeiro, eram o remo e o turfe.

Por conta dessa origem elitista somente a partir da década de 1910 é que o esporte, com a realização de torneios organizados e os primeiros amistosos entre as cidades, passou a ter mais relevância, inclusive na imprensa. No limiar do século 20, os jornais praticamente ignoravam as atividades esportivas, dedicando-lhes pouco ou nenhum espaço. Mas tiveram que se render à força e ao fascínio do jogo que, num primeiro momento, era disputado com material importado: bola de couro, uniformes de linho e algodão e sapatos especiais. É considerado um marco no sentido da sua popularização a incorporação de atletas negros por parte do Vasco da Gama em 1923; embora o Bangu já os tivesse aceitado antes, o Vasco foi o primeiro grande clube a aderir ao óbvio: o crescimento do esporte dependia de sua penetração nas classes trabalhadoras.

Passado algo em torno de 100 anos, o esporte está, indiscutivelmente, consolidado não só como a paixão nacional, mas também como o mais querido em todo o planeta. Qualquer criança que já chutou uma bola sabe disso. Pegue, por exemplo, dez adolescentes de 15 anos, de qualquer lugar do mundo, e mostre fotos de Pelé, Maradona, Ronaldo Fenômeno, Kaká, Messi, Cristiano Ronaldo. Mostre a camisa do Barcelona. Provavelmente serão todos, ou quase todos, reconhecidos e considerados familiares. Mas naturalmente não foi sempre assim.

Imaginemos as dúvidas e o receio do jornalista que foi escalado pela primeira vez para cobrir um evento do esporte nos seus primórdios. Como escrever sobre algo que a maioria das pessoas não tinha a menor ideia do que se tratava? Como contar o que é uma partida de futebol, se isto nunca havia sido contado? Tarefa bastante difícil inventar um cânone. Vejamos um pequeno trecho de um jornalista desbravador, cronista do Correio do Povo, a quem foi atribuída a função de escrever sobre o primeiro Gre-Nal da História, realizado em 1909:

Lindíssimo era o aspecto que apresentava anteontem o ‘ground’ dos Moinhos de Vento, quer pela sua ornamentação como pela concorrência. Lá estavam cerca de 2.000 pessoas ansiosas por assistir ao encontro dos primeiros teams do Grêmio F. Ball P. Alegrense e do Sport Club Internacional. O belo sexo, representado por grande número, apresentou-se ostentando finíssimas ‘toilettes’ entre as quais muitas adaptadas aos jogos ao ar livre. Ao projetado torneio, por várias vezes nos tínhamos referido, pois prometia ele ser renhidíssimo, como de fato o foi.

As referências à “ornamentação” e ao “belo sexo” (“ostentando finíssimas ‘toilettes’”), ao aspecto “lindíssimo” do “ground” poderiam fazer supor que se tratasse de alguma atividade cara ao colunismo social e à vida mundana portoalegrense. O emprego de estrangeirismos (como o “ground” referido) na época era comum e até bastante compreensível, principalmente no caso da língua inglesa, devido à origem do esporte e, em alguns casos, pela própria ascendência dos jogadores. Como pode ser também observado nas linhas a seguir:

Entremos a descrever em ligeiras linhas as peripécias do jogo, o qual foi além da expectativa. Às 3.25 pelo respectivo ‘referee’, sr. Waldemar Bromberg, foi dado signal de ‘kick-off’, cabendo este ao center forward Booth, do team azul. Nos primeiros minutos, o jogo esteve indeciso, pois o team azul, que era constituído de excelentes elementos, pretendia conhecer a força do seu rival. Pelo primeiro lance, verificou-se que a linha de forward do Grêmio F. B. era bem combinada e com bizarria atacava os seus adversários sendo rechaçados, por várias vezes, pelos ‘halfbacks’ do team encarnado.

Uma característica marcante do modo narrativo presente nos dois trechos e que cabe ressaltar aqui é o tipo de construção sintática utilizada pelo nosso jornalista. Para os padrões atuais, há muita pompa e prolixidade, com largo uso de expressões pretensamente poéticas. (Embora, para os defensores da norma culta, talvez seja um importante legado estético.) Para contar que no início da partida os times estavam ainda se estudando, ele afirma que o jogo “esteve indeciso”, pois o Grêmio “pretendia conhecer a força do seu rival”. Depois relata que o Grêmio “com bizarria atacava os seus adversários sendo rechaçados, por várias vezes” pelos defensores do Inter (grifo meu). Tudo isso leva a crer que a disputa estaria sendo bastante acirrada, inaugurando, portanto, em grande estilo a famosa rivalidade entre tricolores e colorados do Rio Grande do Sul. Mas não. Na verdade, o Grêmio aplicou uma surra de 10 a 0 no então recém-formado Internacional.

Em relação à linguagem propriamente literária, o escritor Nelson Rodrigues, grande fã do esporte, algumas décadas mais tarde, nos deu fartas e preciosas mostras de seu talento nas crônicas sobre o futebol. Alguns outros grandes nomes da literatura (e do jornalismo) também se aventuraram na crônica esportiva, como José Lins do Rego, Vinícius de Moraes, Roberto Drummond e Armando Nogueira, mas ninguém brilhou mais do que Nelson. Ele tinha a fértil capacidade de transformar uma peleja chinfrim numa épica jornada. Como, de certa forma, também se utilizavam da imaginação os eletrizantes locutores que ao narrar uma partida abusavam das hipérboles para prender a atenção dos ouvintes na chamada era do rádio (cujo poder com o passar do tempo e a chegada da televisão foi enfraquecido, naturalmente, mas não deixou de existir). Com a força de seu entusiasmo, os radialistas-narradores tinham que dar a ver a partida em todas as suas nuances apenas com o recurso do áudio. E – a menos que estivesse presente no estádio, e talvez vendo um outro jogo – ao aficionado só restava acreditar.

Situação completamente diferente desta é a que se vive hoje. Com a evolução e a utilização simultânea de várias tecnologias, com a transmissão dos jogos pela tevê em alta definição e o auxílio de cada vez mais câmeras, com a incorporação da internet à cobertura jornalística, tudo que é dito (e escrito) pode (deve) ser devidamente comprovado – como que num louvor e numa busca olímpica da mais pura objetividade. O próprio jornal tem hoje o seu espaço redefinido na cobertura esportiva, pois a rapidez das mídias eletrônicas pode transformar em questão de horas, ou até de minutos, uma informação quente numa notícia velha. Ao jornal caberia agora, mais do que “contar” o jogo, esmiuçar os fatos e fazer a análise das notícias.

Um bom exemplo da relação entre mídia e futebol atualmente pôde ser dado na recente final da Liga dos Campeões 2011, entre Barcelona e Manchester United. Este jogo foi assistido por mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo. Na cobertura, os jornais e as tevês forneceram incessantemente, durante os dias que antecederam ao jogo, diversos dados e informações (como faturamento, patrocínio e números de sócios dos respectivos times, além daqueles específicos da preparação e retrospecto das equipes), para forjar onde quer que fosse a ambiência da decisão. No dia seguinte, o jornal O Globo exibia a seguinte manchete: “Um futebol de outro mundo”. No corpo do texto, o jornalista Fernando Duarte afirma que “os catalães jogam, hoje, algo bem acima de tudo que se pratica no futebol mundial. E reforçam os argumentos dos que os colocam em listas dos melhores times de todos os tempos.” Claro, sintético e objetivo.

Os colunistas Renato Maurício Prado e Fernando Calazans, do mesmo jornal, e a quem cabe a função de analisar os fatos, também não deixaram dúvidas sobre o que aconteceu em campo. Escreveu Renato, com perspicácia: “Esse timaço do Barcelona é tão bom, mas tão bom que por mais forte que sejam seus adversários, na maioria das vezes, acabam parecendo medíocres – todos colocados na roda e assistindo, impotentes, ao exuberante toque de bola da equipe catalã.” Já Calazans, também lançando mão do texto ágil e da mesma entusiástica coloquialidade, foi mais preciso em seu comentário:

O Barcelona foi mais Barcelona do que nunca (67 por cento de posse de bola), impôs seu jogo, seu estilo, seu ataque, e sapecou 3 a 1 no Manchester, sem se importar com o nome do adversário, e com direito a tudo que tem de bom: jogadas e finalizações de Messi, passes de Xavi e Iniesta, e ainda um chute esplendidamente colocado de Villa. O Barcelona reservou para a final um show completo, show de melhor time do mundo.

Por mais que os tempos atuais nos levem a privilegiar a objetividade dos fatos em detrimento da capacidade imaginativa, o futebol como nenhum outro esporte mexe com a alegria e a paixão do torcedor. Poucas coisas nessa vida são tão inesquecíveis como passar de pai para filho a emoção de torcer pelo mesmo time e vibrar junto com o futebol. Porque, entre outros trunfos, e além da beleza do jogo em si, ele é imprevisível (lembre-se, por exemplo, da desclassificação em massa dos “fortes” clubes brasileiros na Taça Libertadores 2011, na mesma semana, à exceção do Santos). O brasileiro gosta do jogo bem jogado, do futebol-arte. Somos todos técnicos e entendidos no assunto. Porém, muitas vezes, o torcedor vê e ouve o jogo que bem entende – ainda que haja argumentos cristalinos e um aparato tecnológico indiscutível apontando para outro lado. E por mais que os competentes recitadores de estatísticas e os meros idiotas da objetividade (como diria Nelson Rodrigues) queiram tratá-lo – e entendê-lo – como se fosse uma ciência exata. A despeito de ser só um jogo, o futebol é muito mais do que um jogo.