terça-feira, 1 de março de 2011

O abridor de manhãs

A SOMBRA DO FAQUIR 13


Após um longo período de sedentarismo e horários extremamente anti-sociais, para poder acompanhar amigos e parentes nas férias me treinei para acordar mais cedo e tomei gosto. Então desde o início do ano que novamente volto a levantar da cama por volta das sete, oito da manhã. E vou dar um mergulho na praia, alternando caminhada e corrida. Júlio de cara estranhou, achou que não era o pai que estava ali ou que aquilo não ia durar. Sylvia comemorou a possibilidade de estarmos juntos no fim-de-semana num turno que era praticamente inexistente. Eu, confesso que depois de dois meses me sinto até mais jovem por resgatar hábitos saudáveis e das antigas.

É importante ressaltar que uma coisa é acordar cedo para abraçar a natureza (e o esporte). Outra coisa é para sair de casa apressado para o colégio, a faculdade ou o emprego de ponto. Apesar de necessários, assim não tem graça. De qualquer forma, com tal mudança de horário o dia fica mais longo e a noite mais curta. E, já que abstrair do clima Rio 40 graus é impossível, nada tem sido tão bom como entrar dentro do verão para começar o dia, com o sol mais ameno. Para isso, todas as manhãs passo protetor solar, pego o boné e os óculos escuros e vou andando até a praia. Mas um dos melhores momentos do meu ritual é observar, de longe, ao chegar à esquina da Figueiredo Magalhães com Domingos Ferreira, se ele está lá.

Sim, ele é o abridor das manhãs. O presidente do verão. Pelo menos, do meu verão. Não é o homem que traz o jornal, o moço da padaria que faz o sanduíche na chapa, o vendedor da barraquinha na areia ou o salva-vidas. Não é também uma deusa inebriante que passa com o corpo escultural e molhado... Não. Nada disso. Ele é um velho que às oito e meia da matina já está tomando uma cerveja acompanhada de um copo de conhaque. Todo santo dia sua cadeira está a postos. No bar que fica na quadra da Figueiredo Magalhães com a praia ele tem lugar cativo. Praticamente todos os dias ele está lá, na cadeira de plástico com um banquinho de madeira que botam na calçada em frente ao boteco. O bar em si não tem nada de mais, é um pé-sujo normal, com seus habitués, frequentadores ocasionais e seus bebuns com a validade vencida. Mas nenhum outro tem o lorde da boemia matinal.

A primeira vez em que o vi, estranhei a violência do teor alcoólico para a inocência infantil das primeiras horas do dia. Meu estômago se retorceu, meu fígado pediu de joelhos para não tentar copiar aquilo. No dia seguinte no mesmo horário, lá estava ele de novo, quieto, em silêncio, e com os mesmos fiéis companheiros: a garrafa e o copo de cerveja e o copo ordinário de conhaque pela metade à sua frente. E no outro dia, e no outro, e no outro... Com a repetição da cena, pude perceber que aquele pedaço da manhã naquele local e com aqueles apetrechos para ele é sagrado. Provavelmente ele, um senhor de seus setenta e poucos anos, passa o resto do dia aguardando chegar a sua hora de abrir a manhã e enfeitar o bar com a sua chapliniana figura. Porque ele não fala alto, não dá escândalo. Aliás, ele mal fala. Apenas fica ali, bebericando e observando as coisas em volta com olhos de um bichinho inofensivo e carente sob os óculos de grau.

A primeira vez em que não o vi, estranhei como se estranha a ausência de um parente querido numa festa familiar. Afinal, pude testemunhar seu comparecimento ao botequim de domingo a domingo por algumas semanas. E admirar seu comportamento majestoso e elegante de quem não está fazendo mal a ninguém, no máximo só a si mesmo. Ou seja, o bêbado ideal. Cheguei a elucubrar sobre sua vida: será que tem mulher, filhos, alguém? O certo é que dois dias depois de seu primeiro sumiço, ele voltou para abrir as manhãs, mas estava com alguns curativos pelo braço e pela perna. Comecei a reparar que estava me preocupando com um estranho como se ele fosse realmente importante para mim. Um estranho que deixou há muito de ser estranho, embora nunca tenha trocado uma palavra com ele.

Agora toda vez que chego à esquina e o vejo no bar já no batente sinto uma espécie de alívio. E quando acontece de me deparar com aquela cadeira desocupada, onde ninguém mais ousa sentar, minha mente divaga por questões sombrias: será que ele caiu em casa? Será que baixou no hospital? Será que o organismo não aguentou mais? Será...? Mas os dias de ausência, felizmente, são ainda em número bastante reduzido. Pelo menos por enquanto. Hoje ele estava lá, com os olhinhos curiosos, o jornal amassado embaixo do banco turbinado e mastigando a dentadura. E amanhã, será que ele vai?