terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Um Brasil x Argentina na Cadeg

DE BAR EM BAR (84) – Barsa

A visita à Cadeg já estava para acontecer desde o ano passado, com um ou outro adiamento. Mas, enfim, foi desta vez, num sábado de verão daqueles, com saída na temperatura amena do meio-dia e meia. Rumamos eu e Sylvia para Benfica, logo depois de São Cristóvão. O programa é para ser cedo, pois, conforme a tradição de mercado, vários bares e lojas madrugam e fecham por volta do início de tarde. Mas em compensação também há outros que só abrem à noite. Escolhemos, por sugestão dos amigos Marcelo Max e Dani Pupo, um que fica aberto até as 17h, o Barsa. Como se sabe, a Cadeg (Centro de Abastecimento da Guanabara), inaugurada no governo de Carlos Lacerda, é um mercado de alimentos, artesanato, decoração, flores, vinhos, bares e restaurantes tão histórico que a Guanabara de seu nome não existe mais. Mas nem por isso parou no tempo. O relativamente novo Barsa, do chef Marcelo Barcellos, é prova disso.

Marcamos com o parceiro Maurício Barros (tecladista e produtor, fundador do Barão Vermelho) e Mel mais dois casais, os citados Max e Dani e o argentino carioca Federico Bardini e sua mulher, a brasileiríssima Aline. Para meus padrões, já seria mesa quase inviável. Sou daqueles que detestam aniversários e reuniões em mesas enormes. Dependendo do lado de quem se sentar é uma cilada máxima, pois não há como fugir imediatamente. Além do eterno problema da despesa rachada no final com às vezes praticamente desconhecidos e quase sempre com contas insolúveis. Mas, como no caso são todos amigos, é para ser um prazer.

Há algumas mesas no pequeno salão interno, mas o melhor mesmo é ficar nas mesinhas e cadeiras de madeira espalhadas pela ruela. Começo com um chope e observo o estabelecimento. Sento-me de frente para a cozinha aberta para os olhos públicos. As paredes são pintadas de amarelo e com azulejos mostarda. A aparência é de limpeza e bom gosto. Sem dúvida, um dos espaços mais arrumados do extenso conjunto de lojas. Mas sem frescura e com adequação ao ambiente. Chegam Max e Dani e, para acompanhá-lo, passo para a cerveja Original. As mulheres planejam comprar vinho rosé na loja perto. Sim, aqui o esquema é civilizado, o dono percebeu que não faria sentido competir com o preço do atacadista vizinho e instituiu apenas a taxa da rolha. Assim como também é permitido trazer o bolinho de bacalhau de alhures para beliscar com a cerveja gelada. Afinal, o Barsa é um restaurante com espírito de botequim. Peço uma porção de bruschetta com funghi e outra de pão do chef, recheado com calabresa e provolone. Ambas vieram muito boas.
As outras opções de entrada são iscas de filé de frango acebolado e caldinho de feijão. Quanto aos pratos do cardápio, Bacalhau Rei, Paleta de cordeiro (cordeiro assado ao vinho do porto com ervas frescas, cebolas roxas e batata caramelada), picanha aromatizada com ervas e mostarda, galinha ao molho pardo, caçarola de coelho ao bourguignon e feijoada. Eis que chegam Maurício Barros e Mel, já dispostos às compras na loja ao lado, e o vinho passa a ser definitivamente a bebida oficial da mesa. (Apenas o Max permanece fiel à cervejinha.) Mais um pouco surgem Federico, Aline, o filho pequeno Geovani e mais um casal de argentinos a tiracolo, o primo Diego e a namorada Vanessa. Agora sim a mesa ficou enorme, mas tudo bem.

Mais outras porções de pão do chef e de iscas de frango (também ótimas) e algumas garrafas de vinho rosé, entre rótulos argentinos, chilenos e portugueses a bons preços, a alegre confusão é total por entre os papos cruzados. As mulheres trocam dicas de viagem, Max me conta da nova fase do estúdio de animação que tem com o irmão, a Consequência, Maurício Barros conversa com o primo portenho, que também é músico e obviamente tem rabo de cavalo (Federico já deixou os mullets para trás). Até que o garçom dá um toque discreto de que é melhor fazer o pedido por causa do horário. A ala carioca da mesa decide pelo Bacalhau Rei e a Paleta de cordeiro. A ala gringa vai de feijoada. Quando chegam os pratos passamos para o vinho branco, também gelado gentilmente pela casa. O bacalhau e o cordeiro desfilam como uma festa para os olhos e correspondem perfeitamente às nossas expectativas. Gostei muito dos dois, com leve preferência para o bacalhau, de sabor imbatível. Quanto à feijoada, não sei, mas garanto que não houve reclamações.

É realmente um prazer dos maiores comer e beber muito bem entre amigos de fé e irmãos camaradas. Ainda lembramos, a propósito, de dois nomes queridos (e suas respectivas) que poderiam ter estado dessa vez entre nós: Roberto Frejat e Pequinho (este o ausente mais citado na De bar em bar). Mas não se pode ter tudo. Tanto é que paga a conta o grupo se dividiu, após algumas tentativas frustradas de convencimento mútuo: alguns foram à praia, dar um mergulho no fim de tarde; outros optaram pela saideira em novo local. Adivinha para onde eu fui? (Uma pista: principalmente porque já havia dado um pulo no Arpoador – acredite se quiser – às oito da manhã.) Saúde e até a próxima.

Barsa – Rua Capitão Félix 110, Cadeg, rua 4, lojas 4/6 Benfica (2585-3743)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Meu caloroso inimigo

A SOMBRA DO FAQUIR 11



Assistindo à tevê, chorei copiosamente. Numa enxurrada de más notícias desabei com a história do sujeito humilde que perdeu, além da casa, a mãe, a mulher e a filha. Mas, em vez de desabar como eu, ele preferiu, com o seu conhecimento da região, ajudar os bombeiros e se transformou numa peça utilíssima nas tentativas de resgate. Pois é com a violência de um milhão de touros selvagens entrando sem pedir licença em sua casa que a tragédia anunciada das enchentes de todo verão não atinge mais só aos pobres. Numa hora dessas em que tanta gente perdeu todos os bens materiais, a família e a própria vida por causa das chuvas, sinto-me até constrangido em dizer que meu vilão particular nesses dias foi justamente o oposto.

Mas (deixando-o para depois) talvez seja melhor pensar, ainda em relação à tragédia, que o brasileiro é antes de tudo solidário. Temos, como povo, algumas características perversas, como o tal jeitinho levado ao limiar da canalhice, só que também somos bondosos e sentimentais: se botar um bom dramalhão na tela, seja novela das oito ou a emoção trágica da vida real, as pessoas se emocionam e mergulham de cabeça na causa. As muitas doações e a participação dos voluntários têm sido a prova disso. E, além do mais, como não se entristecer com o drama de milhares de seres humanos que estão muito perto de você e perdem tudo em questão de minutos?

Por isso é muito bonito ver um menino de dez anos colaborando nas áreas de abrigo. Senhoras participando do recebimento das doações, passando aos outros sacos de feijão ou farinha no mutirão da boa vontade. Sem dúvida nenhuma. Por outro lado, me pergunto se não era para essas operações estarem sendo realizadas fundamentalmente e desde o início pelo poder público, leiam-se polícias civil e militar, exército, aeronáutica, o que for, ou até mesmo instituições públicas de assistência social, já que se trata, assim como foi considerado no caso da guerra civil carioca, de uma questão de emergência radical.

Quem perdeu tudo precisa ao menos beber água e, com todo o respeito e admiração aos que enviaram água mineral aos necessitados, quem tem que providenciar esse mínimo alento aos desabrigados é o governo. O povo ajudar é ótimo, eu também estou nessa, mas por que os governos federal, estaduais e municipais nunca se previnem contra o que se sabe que virá? Porque não dá voto? E mais: por que não houve ao menos um aviso taxativo às populações de que se não evacuassem certos locais haveria morte em série? Não é possível que, por mais que a natureza esteja manifestando agora toda sua fúria contra os maus tratos, certos eventos não possam ser minimamente detectados, principalmente nos casos em que se nota a continuada repetição dos fenômenos.

Um amigo que mora em Teresópolis me conta, entre triste e revoltado, da precariedade da situação da cidade e da atitude da prefeitura que teria bloqueado a ação da Cruz Vermelha e de organizações da sociedade civil, fechando e impedindo o acesso às comunidades. Para tornar o trabalho mais profissional? Quem dera. Desconfia-se de que com a intenção de colher os méritos (e a grana) de posar de herói e salvador da pátria. Chega a ser inacreditável. Por mais inevitável que fosse o desastre natural fica a nítida impressão de que ele poderia ter sido menor e muitas vidas poderiam ter sido poupadas se alguns políticos tivessem mais compostura. E fossem menos inimigos do povo.

Hoje fico sabendo que saiu o sol em Friburgo e isto pode colaborar um pouco com o trabalho de resgate e reconstrução. Que a chuva, se não vai parar, ao menos dê uma trégua. E, quanto ao sol, ele lá e eu cá. Depois de passar uns dez dias de férias na Região dos Lagos sem maiores problemas, resolvi dar um mergulho no Arpoador. Como o tempo estava bastante nublado, mais para chuva, passei um pouco de protetor solar apenas nas tatuagens. Fiquei na praia não mais do que uma hora. Foi o tempo suficiente para ter queimaduras de primeiro grau. Minhas costas e ombros ficaram da cor de uma bela porção de camarão ao alho e óleo. O incômodo foi tanto que cheguei a baixar duas vezes no Pronto Socorro sábado de madrugada. Não conseguia dormir, com tanta coceira e ardência nas áreas afetadas. Mas agora está tudo bem. A próxima vez que for à praia passo protetor até se estiver chovendo. E chuva, por favor, chega de mágoa – caia mais devagar.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Revelações no táxi

A SOMBRA DO FAQUIR 10



Depois de mofar um pouco no ponto desisto de ir de ônibus e pego um táxi, já que estou quase em cima do laço para o primeiro show no Rio do excelente cantor e compositor paulista Marcelo Jeneci, uma revelação que certamente vai entrar pra história. Faz calor e o ar-condicionado do carro é muito bem-vindo. O motorista do táxi, educadíssimo, prefere deixar bem claro o local de destino e o trajeto que percorreremos, apesar de não haver grandes dúvidas sobre qual a melhor forma de como ir da Toneleros, em Copacabana, para o Teatro Casa Grande, no Leblon. Antes precisava passar no shopping ao lado para trocar um presente.

– E aí, doutor, fez muito calor hoje?

Só quem trabalha num frigorífico ou numa fábrica de gelo não deve ter sentido na pele o óbvio.

– Desde ontem que o calor está escaldante.

– É que estava trabalhando 48h e passei a tarde dormindo. Fiquei no ar-condicionado, depois tomei banho e vim trabalhar. O senhor é meu primeiro passageiro.

– Ah, sei.

O que parecia ser uma viagem rápida, dado o pouco volume de carros na Toneleros, logo se mostra o oposto mal cruzamos o túnel que deságua na Pompeu Loureiro. Trânsito parado. Que ótimo, penso eu olhando o relógio. O motorista continua:

– Sabe, doutor, eu trabalho muitas vezes virando a noite porque eu preciso. Tenho que pagar a faculdade de minhas duas filhas. Mas esse motivo compensa tudo.

– O que elas estudam?

– Medicina. Vão ser neurocirurgiãs.

– As duas? Meus parabéns, não é pouca coisa.

– É verdade, doutor. Só o que não é pouca coisa mesmo é o que eu tenho de pagar por mês. Mais de oito mil.

– Oito mil?!

– É, quatro mil e pouco de cada uma.

– Faculdade particular é fogo.

– Mas se Deus quiser elas vão se dar bem. São estudiosas, compenetradas.

– Isso é importante.

– E eu muitas vezes faço corridas para uns médicos figurões...

– Que já sabem de suas filhas...

– Exatamente, doutor. Eu não sou de ficar falando, mas eles me perguntam. Tem até médico desse hospital aqui – aponta para o Hospital São Lucas no trânsito mais do que lento.

– Agora entendi realmente o porquê do seu esforço.

– É isso, doutor. Então pra mim é normal dormir umas horas por noite.

– Mas como o senhor faz para aguentar o tranco? Uma coisa é fazer isso uma vez ou outra, mas sempre...

– Ah, eu nem esquento mais.

– O senhor tem alguma dieta especial, toma remédios?

– Doutor, eu vou ser bem franco com o senhor, que eu estou vendo que é pessoa decente. Eu sou da polícia. Sou tenente e trabalho no Batalhão de Operações Especiais. Estou acostumado a funcionar sob pressão.

– O senhor é do Bope?

– Sim, doutor.

– O senhor participou da operação no Complexo do Alemão?

– Mas claro.

Aquele senhor, que até então mais me parecia um ursinho carinhoso, um doce papai protetor, de repente se transforma num homem durão, porém muito preciso nos seus comentários e ainda muito educado, se é que isso é possível diante de uma guerra. Conta-me detalhes do que aconteceu naquela intervenção que já é um marco na luta do poder público contra a marginalidade no Rio de Janeiro. Coisas que obviamente não saíram nos jornais. Aproveita e reclama da imprensa, que quase teria atrapalhado o sucesso das investidas policiais. O trânsito parado ajuda o motorista a se soltar.

– Mas não sou burro de achar que a imprensa não é necessária.

– Naturalmente...

– Agora não tem cabimento o vagabundo estar vendo na tevê de plasma onde e quando vai ser o próximo passo da polícia.

– A televisão tende a transformar tudo num show pirotécnico.

– Só que sou treinado para não falhar na hora H. O senhor entende o que eu quero dizer?

– Acho que sim.

– Doutor, minha função é passar o rodo. Alguém tem que fazer o trabalho sujo, não é não? O meu trabalho é como o do lixeiro. A diferença é que mexo com o lixo humano. Infelizmente a vida é assim. Tem gente que funciona bem sob pressão, outras pessoas não, eu consigo.

– Conviver com uma situação limite muito tempo não deve ser fácil.

– Mas a cidade está bem mais calma. O Natal e o Réveillon foram de paz.

O carro, enfim, chega ao destino. Tenho pouquíssimo tempo para entrar no shopping e resolver a troca. Agradeço ao motorista a conversa sincera. Mas saio dela tão atarantado que em vez de pegar a escada rolante certa quase me estabaco ao tentar subir algo que está descendo. O mundo real já se encontrava à minha espera.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O paradoxo

Saída extrema da lucidez.
A revelação do quão difícil
Pode ser enxergar as coisas como
A vida não nos pede para viver.
Poço fundo.
Qual caminho levará
Para uma morte aprazível?
Onde estou agora não há
Merlins dourados.
A guerra e a paz de cada dia
Não me dão a necessária camisa
Para a coragem sinal verde.
Quero sim, mas engulo com dificuldade.
Hoje tenho dúvidas se a
Corda bamba me deixou
Uma pessoa menos apavorada.
Clarões de sangue explodem
Como o olhar pedinte de
Um cachorro fiel.
Sou um ser rasgado
Pela metade enquanto penso
Que ouço sir Paul McCartney
Cantar no ouvido que sou mãe e pai
De um sonho anacrônico.
Certamente poderia ser pior.