sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O fanfarrão do boteco ao lado

DE BAR EM BAR – Adega da Praça


A Adega é praticamente um pé-sujo. Onde está escrito “Adega” poderia estar cravado um “Bar” – e não que ache isso exatamente um demérito. Mas a Adega da Praça é um pé-sujo simpático. O espaço é pequeno do lado de fora, apenas cinco ou seis mesas. A vista da calçada dá para a Praça São Salvador, típica praça dos velhos tempos, com seu chafariz, suas árvores, seus aposentados, suas crianças correndo.

Chego esfomeado ao local, nessa tarde de muito calor. Dou uma geral nas mesas em volta, vejo uma família almoçando PF, duas mulheres comendo pastel, um casal, bastante curioso, bebendo cerveja. Peço ao solícito garçom uma Brahma Extra e, seguindo as mulheres, um pastel de queijo minas. O casal é curioso porque ela parece a Marge Simpson e ele, um hippie velho.

- Eu preparei a casa, fiz comida. Aí quando eles chegam ficam me criticando.

- Você não quer ter trabalho?

- Não é isso!

Irritados um com o outro, Marge e o Homer psicodélico ficam um tempo calados. Depois de devorar o pastel – consistente, sequinho –, eu pude descobrir que o problema era com os filhos, que têm vergonha dos pais meio hippies. O eterno e necessário conflito de gerações. Antes que eu pegasse no sono com o silêncio, observo um senhor de bigode que mudou de mesa e pede para o atendente, o mesmo garçom solícito que me serviu, limpar o local. Mas com certa aspereza.

- Seu primeiro dia hoje?

- É, sim senhor.

- Você vai gostar. Aqui é bom.

O bigode diz o “aqui é bom” cheio de marra. Em seguida, assoa o nariz, dá uma tragada no cigarro e um gole na cerveja. Os trajes são humildes, a arrogância vem de sua personalidade. Olho para dentro do bar. Nas paredes de azulejo, cartazes de cerveja, plaquetas com ditos populares, como “A inveja é igual a sapo: tem olho grande e vive na lama”. Eis então que surge o meu personagem.

Ele sequer estava no mesmo boteco. Fronteiriço à Adega da Praça fica a Casa Brasil, um bar mais sofisticado. Mas eu ia dizendo que o meu personagem adentrava o bar vizinho. De forma barulhenta, cumprimentando a todos de uma mesa de locais. Lembra um pouco o Ernesto Neto, talentoso artista plástico, ou o Cambraia, também talentoso, baixista de Nando Reis.

(Mas se o leitor não conhece nenhum dos dois, nem sabe como são, explico que o personagem é gordinho, simpático, cabelo comprido encaracolado e inteligente. Sobretudo inteligente.) Vamos chamá-lo, por justiça, de Cambraia Neto. Imediatamente, Cambraia Neto centralizou todas as atenções na mesa da rapaziada da área:

- Entendeu? Você tá numa roubada e ele é o cara que vai ajudar. A malandragem está na ajuda!...

Camisa social, calça jeans e bolsa de couro, Cambraia Neto toma um chope com os amigos e conta em detalhes a sua viagem à Espanha. Ele conheceu Madri, Barcelona, Granada, Galícia. Todos riem muito. Fico a me deliciar com as histórias do fanfarrão. Peço, na minha Adega, um sanduíche de salaminho e mais uma cerveja, enquanto o olhar está todo voltado para o bar do lado. Culpa do Cambraia Neto. Saúde e até a próxima.

Adega da Praça – Rua São Salvador, 75, Flamengo (2558-3285)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Sobre empadas e odontologia

DE BAR EM BAR – Salete


Dia desses, fui ao Salete com meu irmão Maurício (pensei em botar “M.”, mas o outro irmão também é “M.” de Marcelo). Ele, dentista e professor universitário, dá aula ali perto e está prestes a mudar o pouso acadêmico para outras paragens. Aproveitei, enquanto há tempo, a companhia de quem conhece bem o local. Para quem não sabe, o bar Salete é uma instituição na Tijuca, fundado pelo espanhol Manolo, em 1957.

Chego antes de meu irmão e posso observar com calma o ambiente. Bar das antigas, e também restaurante, com risoto de camarão, filé e tudo mais. Paredes com azulejos brancos e azuis, chão com tacos alvinegros, quadros naturalistas de paisagens remotas. Há, além de mim, mais algumas pessoas em três ou quatro mesas. Lá fora, as mesinhas redondas com banco alto estão todas ocupadas.

- O que o técnico disse? É pra você ir treinar ou não?...

O homem que conversa ao celular toma um chope e está diante de outro que bebe uma coca. Desliga o aparelho e fala com seu acompanhante.

- Nós jogávamos contra o Flamengo de Zico e Júnior, tomávamos de seis, sete, oito... E quando alguém se destacava, vinha o clube grande e se entendia com a gente, não tinha essa de empresário.

- Pra você, que jogou muito, mesmo não tendo conseguido um time de expressão...

- As contusões nos dois joelhos acabaram comigo.

- ... pra você deve ser mole lidar com esses garotos, falar a língua deles...

- Hum! O moleque hoje faz uma partida boa, no dia seguinte já quer um contrato com o Milan, o Real Madri.

Da cozinha sai uma fornada de empadas. Rapidamente surgem dois interessados e levam embalagens com os acepipes. O garçom pega algumas para servir as mesas da calçada. Nisso, desce as escadas do salão refrigerado, no andar de cima, uma mulher loura com ar de poderosa. Ela fala com um funcionário no balcão, senta-se na mesa perto da cozinha e come singelamente uma empadinha.

- Tá faltando coração. Ninguém quer mais jogar no mesmo clube duas, três temporadas. Só se for no Flamengo.

- Lá vem você com essa mania de achar que o Flamengo...

- É o maior do mundo mesmo, só que o mundo agora é outro.

Eis que chega o meu irmão. Ele também é flamenguista e devoto da religião segundo a qual todos são flamenguistas, mesmo que alguns não o reconheçam – obviamente que já brigamos muito por futebol. E a loura poderosa, que já estava sentada com outras pessoas na mesa ao lado da minha, se levanta e se dirige a ele:

- Como é que você entra aqui e não vem falar comigo?

Ela é a Sílvia, que toca o negócio depois da morte do pai, há quatro anos. Para isso, teve que largar a vida de dentista para dedicar-se ao Salete, mantendo-o como sempre foi. Aliás, com algumas pequenas modificações, como botar no cardápio as empadas de palmito e frango. O pai achava que devia restringir-se à perfeição da de camarão. Mas comprovei que aquelas também são excelentes. Pude experimentá-las enquanto ouvia algumas histórias engraçadas do Manolo. Graças a Deus, meu irmão e sua ex-aluna não falaram sobre odontologia. Saúde e até a próxima.


Salete – Rua Afonso Pena 189, Tijuca (2264-5163)

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O meu momento Gisele Bündchen

DE BAR EM BAR - Pizzaria Guanabara


Outro dia tive meu momento Gisele Bündchen. Aliás, não só eu, como também o amigo e colunista vizinho Alexandre Lalas. Fomos fazer uma foto para a capa desta nossa Revista em pleno Baixo Leblon. Apresso-me em dizer que estávamos lá apenas para indicar um punhado de bares e lugares de vinho (desculpe, Lalas). Enfim, eu nem acreditei quando, no meio da tarde, adentrei a Pizzaria Guanabara e um miniestúdio havia sido montado para nos receber. Foi, sem dúvida, o meu ápice como modelo fotográfico.

A Pizzaria Guanabara é um bastião da boemia carioca, imune a modismos e horários. Se eu fosse dizer quantas madrugadas já passei por aqui, desde meus vinte e poucos anos, quando a rua parava e as pessoas ficavam bebendo na rua, mais ou menos como é hoje no Baixo Gávea, não vou conseguir. E provavelmente como alguns de vocês também não. (Hoje há também uma Guanabara na Lapa e na Barra, mas estou me referindo, naturalmente, à original).

A varanda está com duas ou três mesas ocupadas. Ainda é muito cedo para o movimento normal. Eu e Lalas ficamos na parte interna, absolutos, onde foi improvisado o cenário para a foto. Bem, vamos encurtar esta parte. Depois de umas duzentas fotos “não tão boas”, segundo o paciente Fernando Souza, o fotógrafo, e vários chopes e taças de vinho para que um simples brinde ficasse ao menos razoável, conseguimos finalizar. Ser canastrão dá muito trabalho.

Eis que surge no bar a jovem cantora Marília Bessy. Eu e Marília sentamos na varanda. Ela me conta que vai lançar disco com a produção de Rodrigo Santos, baixista do Barão Vermelho, que também vai lançar CD em breve, o seu segundo (O Rodrigo vale uma coluna à parte: era um sujeito desgovernado quando bebia, capaz de fazer barbaridades de comédia pastelão, parou com tudo e hoje está bem assim, criativo e produzindo bastante – e, graças a Deus, não perdeu o humor).

Bebemos chope e comemos um couvert básico, com pão de queijo, picles, torrada, manteiga e azeitonas. Marília Bessy me conta detalhes do seu repertório, de como, envergonhada, conheceu Ney Matogrosso, dos elogios que recebeu. Marília é uma baixinha vulcânica. Já ouvi alguém dizer que será a nova Cássia Eller. Eu acho isso de uma injustiça cruel. Com a Cássia, obviamente, porque ela era fabulosa, uma artista incomparável. E com a Marília também, porque isso seria peso demais sobre sua cabeça. Melhor deixar Marília Bessy ser Marília Bessy.

- Eu nem ligo mais. Agora com a minissérie da Globo até a Maysa já disseram que tem a ver comigo.

A noite vai caindo e a Pizzaria começa a encher. Lembro das muitas noites em que dava uma passada rápida e comia um pedaço de pizza no balcão. Ou de quando comecei a vir aqui e sempre dividia um medalhão com arroz à piamontesa com meu amigo Ricardo Coelho, um natalense carioca. Eu e Marília pedimos uma pizza portuguesa, apesar de seus protestos por estar de regime. Mas ela não se arrependeu. A Pizzaria Guanabara continua sendo única. Até o dia amanhecer. Saúde e até a próxima.

Pizzaria Guanabara – Avenida Ataulfo de Paiva, 1.228, Leblon (2294-0797)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Primor de concisão

Gosto muito de poemas curtos, conforme o nobre preceito do menos é mais. Este, de Francisco Alvim, é sensacional:

Argumento


Mas se todos fazem


(In: Elefante. S.Paulo, Companhia das Letras, 2000)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

DE BAR EM BAR - Casa Paladino


O espaço do bar, no antigo estabelecimento situado na esquina da rua Uruguaiana com a avenida Marechal Floriano, é dividido com uma mercearia de secos e molhados. E posso lhes garantir, só por esta singela descrição, que vale a visita. Trata-se da Casa Paladino, presente entre nós há 102 anos. (um detalhe: a entrada é exclusivamente pela tal mercearia.)

Faz um dia chuvoso no verão do Rio de Janeiro. Que novidade. Não tanto como no dia anterior, de alagamentos, trânsito infernal, transtornos absurdos. Chego no meio da tarde, há duas mesas ocupadas: na primeira, um rapaz come um sanduíche de salame; na outra, está um senhor gordinho, cabelo liso escuro, camisa social listada de vermelho e branco, calça social bege e pulseira de ouro no pulso. Ele conversa animadamente com o garçom, toma um chope e um Steinhager.

- Já reclamei que vocês estão perdendo cliente. Sabe o que é que ele me falou?

- Posso imaginar.

- “Estou preservando sua saúde.” Ora!...

Peço um chope e meia porção de azeitonas calabresas para abrir os trabalhos. O salão tem em torno de 25 mesas, todas com toalhas azuis, e cadeiras boas, experientes, como quase tudo aqui (olho para o teto e vejo-o descascando; enquanto não começar a esguichar água tudo bem). O garçom que conversa com o fumante agoniado é o Mário, o mais antigo dentre os garçons do local. Mas, mesmo assim, não vão pensar que o coroa é a uma múmia.

- Eu vou me aposentar esse ano. Agora aposenta até pela internet. Depois vou viajar.

- Você que é feliz, Mário. Eu com a minha aposentadoria dá para ir até o Méier. E de van, não é de ônibus com ar condicionado não.

E continua a reclamar que não pode fumar ali, porém mais por costume do que por alguma chance de vingar a demanda. Até que vem o dono, mais de 70 anos, português legítimo, sotaque original e tudo. Tapinha nas costas para cá e para lá, sorrisos, brincadeiras, e, sem nada mais a fazer, o dono se volta para seus afazeres no armazém.

O senhor gordinho da pulseira de ouro ainda pede mais um chope e um Steinhager. O rapaz que comia sanduíche já havia se retirado. O gordinho, depois de virar suas bebidas, confidenciou-me, tocado, com a intimidade de quem era o único além dele no bar: “Não sei se você sabe, mas eu mudei o escritório para a Rio Branco. Vai ficar mais longe daqui. Assim eu paro de beber”. Deu um risinho e saiu. E eu retribuí, fingindo que acreditei.

Fiquei sozinho no salão. Aliás sozinho, não: eu, Mario e outro garçom jovem, raridade no pedaço. Eles comentam que ontem, devido à chuva, só conseguiram pegar trem depois das dez. Eu, na minha ingenuidade, digo que deve ter ficado vazio o bar por causa do temporal.

- Pelo contrário, o bar lotou do pessoal esperando a água baixar.

Só me resta comer uma omelete. Fico na dúvida e peço ao Mario uma sugestão. Ele me recomenda a de sardinha portuguesa. Eu aceito. Ele pergunta: salsa e cebola? Certamente. Não ouso contrariá-lo. A omelete vem divina. Acompanho com um chope escuro, muito bem tirado. Saúde e até a próxima.

Casa Paladino – Rua Uruguaiana 226, Centro (2263-2094)