A SOMBRA DO FAQUIR – 3
Antigamente se dizia que para que uma vida valesse a pena ser vivida o indivíduo deveria, antes de expirar sua passagem pelo planeta, fazer três coisas: 1- plantar uma árvore; 2- ter um filho; 3- escrever um livro. Ações que justificariam uma existência. Com o império do descartável, com a revolução da tecnologia da informação e com a alucinada velocidade subjetiva do tempo, tais requisitos não são mais primordiais. Ficaram defasados.
Hoje não é mais necessário plantar uma árvore. A consciência ecológica e o sentido de perenidade (que não dura mais uma vida inteira mas até o próximo verão) podem ser aplacados com o apoio virtual a campanhas como salvem as baleias e não ao desmatamento da Amazônia, e ainda com pequenos grandes gestos como a utilização de sacolas retornáveis no lugar das sacolas de plástico nas compras do supermercado. Tudo em nome do futuro.
Hoje não é mais necessário ter um filho para se dar continuidade a uma cadeia hereditária. Como a família não possui mais um formato único, padrão, é possível ser o pai (na prática) do filho (de outro casamento) da sua atual mulher. E vice-versa. Com muito mais tempo de convivência e de afeto do que os progenitores reais em boa parte dos casos.
Hoje também não é mais necessário escrever um livro. Num momento em que cada vez mais se questionam mídias como o livro impresso e o CD (este praticamente moribundo), o invisível espaço virtual para troca e aquisição de conhecimento e fruição estética é o caminho ladeira abaixo da humanidade atordoada e dispersa em mil e um estímulos que nos liberam da experiência tátil e do contato físico.
Portanto, diria que, atualizando o ditado popular, três possíveis razões contemporâneas para validar uma existência neste início de século 21 seriam: 1- participar de um reality show (como se sabe, hoje esse tipo de programa está presente em praticamente todos os canais de televisão e sobre os mais variados assuntos: anônimos que querem virar celebridades, bandas de rock, chefs de cozinha, casais gordinhos, quase famosos, cães problemáticos e por aí vai); 2- casar no mínimo três vezes (o que gera uma infinidade de subfamílias que se interpenetram e garantem amor e ódio para sempre); 3- escrever um blog (qualquer um pode ser escritor ou jornalista e garantir seu lugar na posteridade virtual).
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Segundo tais requisitos, a minha vida estaria ainda a 2/3 do ponto de poder ser considerada plena – atinjo tão-somente o último item e mesmo assim a custa de muita resistência e indecisão quanto à minha real aptidão para essa modalidade de diário pessoal e público.
Num exercício de imaginar o que significa para mim uma vida bem vivida diria que é preciso: 1- antes de mais nada, fazer o que se gosta; 2- ter ao menos um grande amor, um grande amigo ou um grande parente; 3- ter sempre dinheiro para comprar livros, discos e, digamos, algum cachorro engarrafado.
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Esta eu ouvi numa das últimas edições do extraordinário programa Coisas pelas quais vale a pena viver, da atriz Priscilla Rozembaum e do ator, dramaturgo e cineasta Domingos de Oliveira, que passa no Canal Brasil. A respeito do último dia da temporada da peça Moby Dick no Teatro Poeira, no Rio, mestre Domingos mandou: “Sabe qual é a forma mais interessante de sabedoria? A loucura controlada.” É isso aí.
terça-feira, 31 de agosto de 2010
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