sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A consciência negra fora do lote

DE BAR EM BAR – Angu do Gomes


Depois de tudo, a última coisa que Nei me disse, antes de deixar o Largo de São Francisco da Prainha rumo a Seropédica, foi precisamente isto: – Valeu, Santa, vamos em frente! Quando o censo bater na minha casa, faço um passo de samba e mando brasa: sou, com orgulho, afrodescendente! Valeu, saúde pra você e os seus. Até a próxima meu cumpádi.

Terminou quase assim, nesses dias, este casual encontro com o escritor, ensaísta, compositor, sambista e grande figura Nei Lopes. Conheci-o quando participamos de um debate sobre literatura e canção realizado na flip de 2007. O debate em si rendeu menos que o esperado, o que valeu mesmo (e ficou em minha memória, apesar de tudo) foi a tarde que passamos bebendo uma cerveja de responsa e jogando conversa pra dentro. Eu, ele e sua esposa (Sônia) emendamos um papo durante o almoço que se estendeu até de noitinha, estourando até o último minuto que tínhamos para nos dirigir ao local do debate. Pois sim.

Cheguei ao Angu do Gomes no meio da tarde, no tradicional larguinho no bairro da Saúde, região portuária carioca, que ainda respira um Rio das antigas (e alguma malandragem). Entro no pequeno salão, sento-me na fileira da esquerda, atrás de uma mesa com quatro colegas de trabalho, dois homens e duas mulheres. A casa está no final do movimento de almoço, alguns funcionários uniformizados pegam seus talheres e ocupam as primeiras mesas perto do balcão com pratos bem-servidos.

Cabe aqui um esclarecimento: o Angu do Gomes é muito conhecido pelos carrinhos que circulavam pelas ruas da cidade vendendo o prato popular e típico da paisagem carioca. Hoje se vê menos isso. Mas há esse bar e restaurante, que havia sido inaugurado em 1977, e que está de volta ao local que já foi mercado negreiro e se transformou em centro de boemia, palco das primeiras rodas de samba e de capoeira do Rio.

Aqui, além do tradicional angu à baiana, com miúdos de boi, pode-se degustar o angu com algumas variações: carne moída, frango, calabresa ou vegetariano. E os seguintes petiscos: bolinho de feijoada, linguiça mineira, moela, sardinha frita, acarajé, punheta do vovô Basílio (bacalhau imperial, azeitona, cebola e azeite) e, naturalmente, pastel de angu. Entre os pratos, contrafilé, filé de frango e galetinho com guarnição.

Olhando em volta do simpático salão, imagino um senhor sozinho, escrevinhando alguma coisa, numa mesa de canto, à direita. Fixo o olhar e reparo quem é. Penso em não perturbá-lo já que está em atividade. Imediatamente ele também me olha e dispara: – Ô Santa! Há quanto tempo! Tudo bem? Senta aqui comigo...

Não vou nem dizer que o mundo é tão pequeno, porque é mesmo. Estava pensando justamente no homem. Acabara de ler seu romance Mandingas da mulata velha na cidade nova e vim aqui no Angu do Gomes para refletir sobre um trecho do livro que não sai da minha cabeça: “Todo indivíduo é um elo na cadeia da existência, repassando aos seus descendentes o que recebeu de seus ancestrais. A transmissão correta e direta desse saber precisa de tempo e lugar. O tempo é agora. E o lugar é este.”

E esse é o cara. Nei Lopes. Mal me refiz desse ótimo primeiro romance, onde a verdadeira história do nosso povo, não aquela engessada pela história dos poderosos, é contada com liberdade e sabor, e ele já está lançando o segundo: Oiobomé – a epopéia de uma nação. Por falar em sabor, pedimos uma porção de bolinho de feijoada. Veio um pouco gordurosa, poderia ser melhor, mas o prazer do encontro e o angu à baiana, pedido depois, compensaram o pequeno tropeço. E deram sustança à sequência de cervas Original.

Depois que ele se foi, fiquei até na dúvida.

Não sei mais se esse encontro não aconteceu. Ele é tão real... (os quatro colegas de trabalho ainda estão por aqui, alegres e matreiros como adolescentes matando aula). Nei Lopes transformou-se, num único encontro, em amigo, um novo velho amigo de infância. Isso é raro. A questão é que ele fica lá no seu paraíso, lá em seu Lote, num lugar impreciso ente Saracuruna e Seropédica, criando, compondo e vivendo a vida, com sua Sônia. Saúde e até a próxima.

Angu do Gomes – Largo de São Francisco da Prainha, 17, Saúde (2233-4561)

7 comentários:

  1. mauro, muito bom esbarrar aqui no seu blog.Excelente texto sobre o Nei, cheguei aqui justamente pelo blog dele. Gostaria de te convidar para nossa campanha "Que tal um sambista na presidência?". Nei Lopes,Roberto Silva,Dona Ivone Lara,Beth Carvalho e Dicró,estão concorrendo.

    passa lá: http://osamba.net/category/podcast-programa-de-radio/

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  2. Valeu, Thales, obrigado pela leitura e o elogio. A campanha de vocês é interessante e justíssima (por que não?). Apesar da excelência dos outros concorrentes, o meu candidato é barbada. Grande abraço, Mauro

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  3. Querido compadre,
    Bela homenagem aos tradicionais... Isso é raro...
    Darwin está feliz com você, assim como, provavelmente, o Nei:-)O Gomes também, apesar do tropeço:-)
    Se o seu candidato é o Loco Abreu.. é barbada... o resto é midiaticamente suspeito... Espero que você esteja falando do Gabeira... Aqui, em Floripa, as opções são bem difíceis:-( No mais, Nei Lopes para presidente da boêmia carioca do meio da tarde... Saúde e até a minha próxima visita... Sem gripes e sem faltas de memória.
    Aquele abraço,
    Renato

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  4. Querido compadre, valeu. Meu candidato é o Gabeira sim, mas falei do candidato sambista, o próprio Nei. Loco Abreu é o Loco Abreu, não é nenhum craque, mas caiu direto nas graças da galera - é ídolo total... Saúde e até a próxima, sem gripe e sem qualquer outro lapso. abração

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  5. O colega não tem um e-mail de contato?
    abs

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  6. Claro. Aí vai, Marcelo: maurostcecilia@gmail.com
    abs

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  7. Anotado, o meu é 'msaboia63@gmail.com'.
    abs

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