quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Naquelas tardes de domingo

Se o velho ainda fosse vivo, hoje seria o dia que não ia segurar a onda. Não tenho a menor dúvida. Ele não conseguiria nem olhar de rabo de olho para o telão da tevê. Muito menos torcer – nem contra nem a favor. Além de encher a cara, de gritar com a minha mãe desde cedo e de se indispor com a vizinhança, só conseguiria se lembrar da primeira bola que me deu, aquela tal jabulani. Da primeira camisa do Flamengo que comprou para mim, quando eu ainda nadava dentro da barriga. Das inúmeras vezes em que me levou ao Maracanã. Dos meus primeiros testes, dos meus primeiros treinos. Da primeira foto no jornal, tão moleque que eu era. Da torcida pedindo para eu entrar no segundo tempo. Da primeira vez que fui escalado de saída. Dos primeiros elogios nas mesas-redondas. Da primeira vez em que fui convocado. Das situações em que ele me defendeu no bar quando joguei mal. De como sofreu quando fiquei um ano parado por conta de uma entrada criminosa do zagueiro inglês. Do orgulho que sentiu quando fui vendido para a Espanha, na época ainda o principal mercado. Do quanto fiquei rico e famoso depois da ganhar a Liga dos Campeões. Do sorriso sardônico que exibia quando se falava das minhas mulheres. Do alívio quando retornei, mesmo já meio esquecido e sem dinheiro por conta do meu quarto divórcio. Aí, não ia ter jeito: iria se lembrar também de toda a reviravolta. De como eu fui chamado de traíra aqui e ali, apesar de muita gente boa também ter entrado nessa. Depois, a sua pressão iria escalar o Everest – ou o Fuji, se quiserem – até o ataque fulminante.
Tudo começou no tempo da Copa de 2010, quando ainda usava fraldas. O time do Dunga teve aquela trajetória emblemática que todos estão cansados de saber, mesmo os mais desinteressados. Os jornalistas menos pessimistas viram alguma semelhança com a seleção de 1994, bem longe, lá atrás no século passado, independente do valor de cada uma. Depois veio a Copa no Brasil, em 2014, quando todo mundo pediu a volta do futebol criativo que sempre nos caracterizou. O velho foi ao estádio Mário Filho na final com seu pai, meu saudoso avô Toninho, que dizia que bom mesmo era o Zico. Nada de Neymar, Paulo Henrique Ganso, Alexandre Pato ou Philippe Coutinho, hoje devidamente aposentados e com seus nomes inscritos no panteão da glória dos craques eternos. Já o meu pai juraria que fora de série mesmo eram Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho. Kaká nem tanto, dizia ele. Para mim isso não significa nada. O futebol atualmente é muito diferente, com seus três árbitros, auxílio de várias câmeras, substituições reversíveis, ponto eletrônico, pedidos de tempo, preparação física de 100 metros rasos. Pois bem: exatamente 20 anos atrás foi quando o esporte começou a se tornar o que é hoje. Um show de profissionalismo e tecnologia voltado para a máxima produtividade, controlado por quem pouco entende de bola, mas que domina as ferramentas midiáticas mais modernas e surpreendentes – afinal de contas já se pode até ler os sonhos, não é mesmo?, até isso eles já inventaram.
Nesse momento falta muito pouco para o céu ou o inferno. O coração está quase saindo do corpo. O Sawamura, o japeta que divide o quarto comigo, já desceu. Antes ele havia permanecido horas no banheiro. Eu apertado e ele lá. Muito preocupado com seu cabelo: tintura, xampu, pentes especiais, secador, creme alisante, gel – como se ao menos fosse entrar em campo e não mofar no banco de reservas como uma possibilidade inexistente. Agora ele está na recepção, junto dos outros, todos rindo amarelo, com a cara amarela, tudo na maior disciplina e conforme a hierarquia. Finalmente eles vão jogar contra o Brasil. Ou melhor, nós vamos enfrentar o Brasil, que no placar geral das copas, continua soberano, ainda que hoje, com a fusão de países em blocos econômicos, formados por nações politicamente interdependentes, a confusão seja enorme. Tudo em nome da nova ordem mundial – a meu ver, em função da cara de pau dos mais poderosos. Se eu tivesse de explicar as regras atuais para um marciano eu diria o seguinte: o Japão, ainda o atual dono do mundo, foi quem criou as regras e não quis se associar a ninguém, óbvio, até porque as opções imediatas, as duas Coreias, eram consideradas por ele desastrosas. A gigantesca e promissora China (atropelando por fora) também conseguiu essa prerrogativa., como a segunda força mundial. E também deram um jeitinho os Estados Unidos, mesmo em franca decadência, e a Alemanha, empatadas no terceiro posto. O resto do planeta não teve esta sorte. Graças à nova etapa da globalização, Chile, Brasil e Venezuela tiveram de se concatenar (sendo que alguns chegaram a se lembrar, esquerdistas saudosos, da época em que os presidentes destes dois últimos países, também quando eu ainda usava fraldas, governavam com grande popularidade e, dizem, com alguma fanfarronice, mas sem um interfluxo obrigatório). Assim como tiveram de se acotovelar amistosamente Argentina, Uruguai e Paraguai. E no velho continente, amigo E.T. de Marte? França, Holanda e Bélgica. Aí a coisa, quero dizer a fusão, foi ficando mais sem sentido em termos geográficos, por conta de uma inconveniente hostilidade entre vizinhos. Daí se formou, por exemplo, o bloco Inglaterra, Noruega e Grécia. Quer mais? Portugal, Áustria e Escócia. Espanha e Rússia também ficaram juntas, e se tornariam uma seleção fortíssima candidata em qualquer campeonato. Na África, caro alienígena, devido à pobreza, foram só dois blocos: África 1 e África 2. E por aí vai. Mas, no mundo do futebol, todos perceberam que isso não iria funcionar, porque as potências no ex-esporte bretão são por merecimento Brasil, Itália e Argentina, e não Japão e China e EUA e Alemanha, apesar da grande tradição desta última. Daí se voltou à disputa como sempre foi, antes mesmo de ter sido implantado o novo modelo. Para não deixarem tudo na mesma, os poderosos, sempre sob o pretexto de reaquecer a economia, e em nome da nova ordem mundial, criaram o regime de cotas das nacionalidades em leilão – do qual sou um dos principais atores. Portanto, no placar direto entre os dois países que jogam logo mais (pensando-se, claro, no mapa-múndi de antigamente): Brasil 7 x 2 Japão. Este é o escore de Copas do Mundo que promete ser revertido pelos japoneses muito em breve, meta para a qual eles contam comigo, a partir da data de hoje: 13 de julho de 2034. Afinal sou um dos atletas estrangeiros considerados classe A pela FIFA que podem atuar por outras seleções, numa autêntica venda de nacionalidade. Tudo, claro, para aumentar o consumo e reaquecer a economia, seriamente abalada depois dos golpes cada vez mais duros que a natureza tem aplicado ao planeta. Fenômenos como o recente terremoto no Ceará e o veranico no Pólo Norte mostram que ela agoniza mas ainda vive – e até nos oferece pequeno troco aos muitos séculos de descaso, ganância e egoísmo da nossa gente.
No finalzinho da partida, Matsumura avança pela direita, tabela com Kobayashi, passa pelo ala esquerdo brasileiro Felipe Galvão Mascarenhas de Moraes e Silva, vai até a linha de fundo, e cruza pelo alto no meio da área; O volante brazuca Vítor Sombra tenta cortar de cabeça e fura espetacularmente; a bola sobra limpa na meia-lua para o argentino Federico Barros (outro atleta cooptado pelo Japão, como eu) que, com uma visão de jogo diferenciada, entre dois adversários, o ala direito Aldo Porto e o meia Luís Mocó, enfia para mim que, de voleio, emendo com violência sem tempo do zagueiro verde e amarelo Marçal Machado chegar junto, nem tampouco do goleiro Ricardo Alberto esboçar qualquer reação, estufando a rede; logo depois me vejo sufocado por Maki, Matsumura, Sato e os demais japetas numa pirâmide amarela – é tudo o que consigo mentalizar, conforme eles me ensinaram, enquanto encaro com certo desprezo (unicamente por fora) meus compatriotas no túnel de acesso ao gramado. Os brasileiros, por sua vez, guardam para mim um risinho totalmente irônico e irritante. Em seguida, os dois times vão ficar perfilados e ouvir as respectivas canções transnacionais, mixadas por famosos DJs a partir dos hinos dos países de antigamente. É isso. Ainda penso no meu velho e em como é bem melhor que ele não esteja por aqui. Saudades dele naquelas tardes de domingo.

9 comentários:

  1. Muito bom o texto, não o futuro esboçado nele. Só vivendo e vendo para saber se você é bom em previsões. Fiquei imaginando como será o uniforme dos jogadores, as luzes e efeitos no estádio. Viagem. Abraços.

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  2. É, Tânia, é ver pra crer... (apesar de ter escrito o texto antes da copa - dei só uma ajeitada depois). Mas isso é o de menos. Valeu! abs

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  3. Como será o Botafogo no futuro? Já pensou nisso?

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  4. Céus... nunca tinha pensado nisso. O Botafogo do presente já me (pre)ocupa tanto...

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  5. Mauro, adorei!!! Não sei como, mas consegui imaginar todos aqueles jogadores, principalmente o Sawamura! ;)
    Beijos saudosos e parabéns!!

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  6. Valeu, Mari!! O Consulado pra mim é inesquecível.
    Grande beijo.

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  7. Uauuuu compadre!!! Que bela viagem, hein??? Gostei muito, assim como a Tânia, do texto. Já do futuro... quem sabe? Aquele abraço :-)Ps. Será que o Benjor ainda estaria vivo, cantando Sawamura maravilha???

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  8. sensacional Mauro - como tudo que escreve. Esse pra mim foi o melhor de todos! Viagei aqui - me transportei para as emoções paternas, de filho, de ralador, etc. Uma saga futurista e realista, pois na minha opinião nenhum futuro se escreve sem uma projeção do presente - foi isso que fez - a seleção da Alemanha já é assim - e isso que deixou o texto tão real. O futuro é o agora e as emoções serão sempre vividas por pais e filhos. O futebol agoniza, mas mesmo assim o amamos. Com falcatruas ou não, quandoa bola rola, na minha emoção de criança (que ainda existe) saem os Euricos e entram os Zicos !!!!!

    Parabens e abraços

    Rodrigo Santos - seu parceiro, fã e amigo acima de tudo

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  9. Maior viagem !
    Texto sensível e inspirado.
    Parabéns !
    Destaque para a ironia na escolha dos nomes dos jogadores, cada vez om mais sobrenomes...
    Saudades dos meu avô, do meu pai e da primeira camisa do Botafogo.
    Abraços.

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