quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A selvageria do ridículo

A SOMBRA DO FAQUIR – 4


Antes de mais nada é claro que ninguém, fora o palhaço profissional e o masoquista de alma, quer fazer papel de bobo nessa vida. Mas todos, sem exceção, todos nós pagamos nosso mico (leão dourado ou miquinho comum) pelo menos em um momento ou outro – se não para todo o planeta ou a cidade, para um grupo, para poucas pessoas, para alguém lá na esquina, ou, quando é mais cruel, apenas para nós mesmos – e justamente quando ninguém vê. O ser humano sabe ser patético como nenhuma outra espécie porque, além de praticar atos ridículos, também tem a capacidade de analisá-los (ou, na maioria das vezes, os de outrem). Mas quem faz o papel ridículo não é necessariamente um idiota contumaz.

Arriscar-se ao ridículo pode eventualmente ser o preço para o sujeito dar um passo à frente. Por exemplo, no amor. O adolescente para beijar uma primeira vez precisa tentar, prestar-se a ganhar o não. E quem ama recebe de contrapeso o cheque em branco do papel ridículo (quem nunca se apaixonou e fez coisas inacreditáveis?). Pois no currículo de toda gente existe um amor que não deu certo. Mas, como sabemos, ridículo é não amar.

Também na arte o ridículo pode estar muito próximo da ousadia. Ou melhor, é o contrário: a ousadia do artista pode estar a um passo do ridículo. Dependendo do talento, da ambição e do conhecimento do que já foi feito, uma obra esteticamente muito arrojada, “uma inovação”, pode ser realmente uma inovação; mas pode (com muito mais frequência) ser uma coisa que já foi inventada lá atrás, no início do século passado ou mesmo da história da humanidade, e o artista genial só não sabe porque foi muito ingênuo (pura intuição) e não estudou.

O ridículo é próprio da condição humana. A esse respeito, Fernando Pessoa tem o célebre “Poema em linha reta” (“Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”), no qual o poeta afirma ironicamente que apenas ele seria fraco, covarde, vil: “Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, / Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, / Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, / (...) / Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda.” Para depois (nos) perguntar: “Então só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Um grande amigo do ridículo é a ansiedade. A ansiedade pode acabar com uma reputação construída ao longo de anos e transformar subitamente alguém (outrora respeitado) em um ser muito ridículo. Eu sou ansioso. O mundo hoje é muito ansioso, com suas mil e uma tecnologias de comunicação para dar suporte à solidão compartilhada e, também, com a quantidade ultramegablaster de radiação informativa a que somos expostos diariamente, numa razão inversamente proporcional ao conhecimento e ao sentido crítico.

Há situações ridículas pelas quais vale a pena passar uma única vez para nunca mais. É o caso do garoto de classe média que foi pego roubando uma caixa de chicletes no supermercado, ou do adulto que fez ilações completamente absurdas a partir de uma má interpretação dos fatos, ou, ainda, do jovem que se viu preso numa boite, depois de uma discussão de que não foi causador, somente por estar acompanhado de um amigo e, não por acaso (mas sem que soubesse), de um baderneiro (da noite anterior), amigo do seu amigo. Desde que se aprenda e saia intacto destas molecagens (principalmente da última), tudo vale a pena. Passar a noite numa cela de pouca periculosidade, mas abarrotada de arruaceiros encostados à parede e literalmente ver sol nascer quadrado, pode ser uma experiência sociologicamente rica e, claro, inesquecível. Foi inesquecível.

O ridículo tem uma importante função, ainda que às avessas, na tentativa de evolução do homem. Nisso o humor é mestre, utilizando-se do ridículo em estado selvagem para dar a ver uma situação ou uma atitude completamente equivocada. Mas há também os que não se emendam nunca. Existe, sim, o ridículo total (encarnado pelo bobo absoluto). É raro mas existe. No mais, todos nós podemos ser bobos (ou ridículos) para alguém. É a vida. Pois o limite entre a criatividade e o ridículo pode ser mais tênue do que parece. Basta passar um pouquinho do ponto. Por isso, diante da selvageria do ridículo cotidiano, aprender com o erro é essencial.

* * *

Tiririca, Ratinho Jr., Garotinho e Maluf na Câmara dos Deputados... não é apenas muito ridículo – é desolador que ainda elejamos novos macacos Tião e os velhos ladrões de sempre.

3 comentários: