quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Revelações no táxi

A SOMBRA DO FAQUIR 10



Depois de mofar um pouco no ponto desisto de ir de ônibus e pego um táxi, já que estou quase em cima do laço para o primeiro show no Rio do excelente cantor e compositor paulista Marcelo Jeneci, uma revelação que certamente vai entrar pra história. Faz calor e o ar-condicionado do carro é muito bem-vindo. O motorista do táxi, educadíssimo, prefere deixar bem claro o local de destino e o trajeto que percorreremos, apesar de não haver grandes dúvidas sobre qual a melhor forma de como ir da Toneleros, em Copacabana, para o Teatro Casa Grande, no Leblon. Antes precisava passar no shopping ao lado para trocar um presente.

– E aí, doutor, fez muito calor hoje?

Só quem trabalha num frigorífico ou numa fábrica de gelo não deve ter sentido na pele o óbvio.

– Desde ontem que o calor está escaldante.

– É que estava trabalhando 48h e passei a tarde dormindo. Fiquei no ar-condicionado, depois tomei banho e vim trabalhar. O senhor é meu primeiro passageiro.

– Ah, sei.

O que parecia ser uma viagem rápida, dado o pouco volume de carros na Toneleros, logo se mostra o oposto mal cruzamos o túnel que deságua na Pompeu Loureiro. Trânsito parado. Que ótimo, penso eu olhando o relógio. O motorista continua:

– Sabe, doutor, eu trabalho muitas vezes virando a noite porque eu preciso. Tenho que pagar a faculdade de minhas duas filhas. Mas esse motivo compensa tudo.

– O que elas estudam?

– Medicina. Vão ser neurocirurgiãs.

– As duas? Meus parabéns, não é pouca coisa.

– É verdade, doutor. Só o que não é pouca coisa mesmo é o que eu tenho de pagar por mês. Mais de oito mil.

– Oito mil?!

– É, quatro mil e pouco de cada uma.

– Faculdade particular é fogo.

– Mas se Deus quiser elas vão se dar bem. São estudiosas, compenetradas.

– Isso é importante.

– E eu muitas vezes faço corridas para uns médicos figurões...

– Que já sabem de suas filhas...

– Exatamente, doutor. Eu não sou de ficar falando, mas eles me perguntam. Tem até médico desse hospital aqui – aponta para o Hospital São Lucas no trânsito mais do que lento.

– Agora entendi realmente o porquê do seu esforço.

– É isso, doutor. Então pra mim é normal dormir umas horas por noite.

– Mas como o senhor faz para aguentar o tranco? Uma coisa é fazer isso uma vez ou outra, mas sempre...

– Ah, eu nem esquento mais.

– O senhor tem alguma dieta especial, toma remédios?

– Doutor, eu vou ser bem franco com o senhor, que eu estou vendo que é pessoa decente. Eu sou da polícia. Sou tenente e trabalho no Batalhão de Operações Especiais. Estou acostumado a funcionar sob pressão.

– O senhor é do Bope?

– Sim, doutor.

– O senhor participou da operação no Complexo do Alemão?

– Mas claro.

Aquele senhor, que até então mais me parecia um ursinho carinhoso, um doce papai protetor, de repente se transforma num homem durão, porém muito preciso nos seus comentários e ainda muito educado, se é que isso é possível diante de uma guerra. Conta-me detalhes do que aconteceu naquela intervenção que já é um marco na luta do poder público contra a marginalidade no Rio de Janeiro. Coisas que obviamente não saíram nos jornais. Aproveita e reclama da imprensa, que quase teria atrapalhado o sucesso das investidas policiais. O trânsito parado ajuda o motorista a se soltar.

– Mas não sou burro de achar que a imprensa não é necessária.

– Naturalmente...

– Agora não tem cabimento o vagabundo estar vendo na tevê de plasma onde e quando vai ser o próximo passo da polícia.

– A televisão tende a transformar tudo num show pirotécnico.

– Só que sou treinado para não falhar na hora H. O senhor entende o que eu quero dizer?

– Acho que sim.

– Doutor, minha função é passar o rodo. Alguém tem que fazer o trabalho sujo, não é não? O meu trabalho é como o do lixeiro. A diferença é que mexo com o lixo humano. Infelizmente a vida é assim. Tem gente que funciona bem sob pressão, outras pessoas não, eu consigo.

– Conviver com uma situação limite muito tempo não deve ser fácil.

– Mas a cidade está bem mais calma. O Natal e o Réveillon foram de paz.

O carro, enfim, chega ao destino. Tenho pouquíssimo tempo para entrar no shopping e resolver a troca. Agradeço ao motorista a conversa sincera. Mas saio dela tão atarantado que em vez de pegar a escada rolante certa quase me estabaco ao tentar subir algo que está descendo. O mundo real já se encontrava à minha espera.

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