quinta-feira, 19 de maio de 2011

A mosca de Pessoa

(A SOMBRA DO FAQUIR 16)




Abriguei-me da chuva forte que caía no meio da tarde no bar Casual Retrô, na rua do Rosário. O tempo esfriou muito e ouço espirros e tosses por todos os lugares. Tento me desviar deles. Mas como sou hipocondríaco e amigo de Murphy, eles me procuram obstinadamente, seja no metrô, na sala de aula (estou fazendo um curso na UERJ com o apresentador e editor do Sportv Marcelo Barreto e com o sociólogo Ronaldo Helal) ou na bela exposição de Laurie Anderson no CCBB. Menos aqui, ainda bem, no boteco do conhecido chef Santos.

Como ainda não teve início o movimento vespertino do bar, a televisão mostra o jogo do aguado e milionário campeonato inglês apenas para um ou outro garçom. Há nesse momento uma única mesa ocupada, com duas pessoas, no fundo do salão. Peço uma taça de vinho e uma mineral sem gás. Percebo que os dois sujeitos, ostensivamente diferentes, enquanto conversam, bebem da garrafa de cachaça mineira Meia Lua Prata e fumam charuto. Como o bar estava vazio e ninguém disse nada preferi não protestar e sim esticar os ouvidos.

– Quem diria, Fernando, você com essa cara de caretão é muito mais louco do que eu!

– Que nada, meu caro artista! Está aí um quesito em que dificilmente algum outro ser humano irá suplantá-lo. Isto sem falarmos do seu talento musical, naturalmente, que também é fora do comum.

– Porra, você não, véio!... Já chega eu ter que ouvir, do além, o tempo todo... Toca Raul... Toca Raul... Não vem puxar meu saco! Aliás, com qual de vocês estou falando?

– Ora, com qual... Você não está me vendo?

– Sim, estou, mas e daí?... Você é tantos. E não vai me dizer que estou me referindo à sua metamorfose ambulante por causa desta bendita cachaça.

– Gostei da expressão... Aceita mais um gole?

– Claro, meu poeta. Mas não foge do assunto.

– Todos, exceto nunca terem levado porrada na vida, são múltiplos por definição, como eu.

– Ah, já sei! Nem mesmo você sabe qual é a pessoa da vez... ou o Pessoa... de agora. Pode me chamar de louco ou estúpido, mas dessa vez alguém te pegou.

– Quem me pegou, ó pá?

– Eu, Raulzito, seu criado.

– Tu me pegaste, como assim? Preferia que fosse Ofélia, minha antiga namorada.

– Não foge do assunto!

– De jeito nenhum. Só quem puder obter a estupidez ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz: perder, chorar, sofrer vez após vez em busca da beleza!

– Ih, rapaz, com todo o respeito... Acho que a tal da Ofélia despirocou sua cabeça. Seus olhos ficaram até vermelhos e mareados. Se você não tem colírio nem óculos escuros, bebe mais uma dose.

– Talvez seja melhor mesmo. Você é uma grande figura.

– Você acha? Ninguém tem o direito de me julgar a não ser eu mesmo. Eu me pertenço e de mim faço o que bem entender.

– Bravo! Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para pessoas como nós, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

– É isso! Grande pessoa és tu... Nada é mais coerente se virar de trás pra frente, tanto fez como tanto faz... Homem, quero mais um brinde, por favor: viva a sociedade alternativa!

– E vivamos nós, já que o próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.

Quando tentava entender a última frase, eis que chega meu parceiro Roberto Frejat, com quem havia combinado de almoçar e ver a exposição sobre o Poeta dos heterônimos. Comemos o ótimo Bacalhau Retrô, com batatas portuguesas e molho de mostarda, conhaque e vinho do Porto. De súbito, os dois sujeitos ostensivamente diferentes que bebiam aguardente e fumavam charutos somem do fundo do salão. Aperto os olhos e vejo duas moscas sobrevoarem a travessa vazia de bacalhau. Saciados e sem ter pesado muito no estômago, fomos flutuando com a insistente chuva para a exposição ali perto. Deslumbrante seria até econômico para definir o material que é posto à exibição pelo Centro Cultural dos Correios para nós, simples mortais privilegiados. Eu e meu querido amigo nos emocionamos e aprendemos mais um pouco sobre a biografia do poeta lusitano mais brasileiro que existe, que arriscou muitas empreitadas estapafúrdias e que transforma definitivamente quem o lê.

Quase ao final da exposição, chama a nossa atenção o seguinte texto de Fernando Pessoa, em destaque numa das paredes da sala escura: “Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia.” Frejat sorri e comenta que é totalmente metamorfose ambulante. Logo pego um pedaço de papel qualquer para anotar o trecho e, enquanto rabisco no breu, disparo a recitar mentalmente o mantra: Toca Raul... Toca Raul... Ao sair do prédio, sinto um zumbido alarmante, tão egoísta como um beijo, rasgo imediatamente o papel e o jogo no lixo; em seguida despeço-me do parceiro e sigo meu caminho, mas com o mantra (e o zumbido) ainda na cabeça.

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