quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quando a letra vira música

A SOMBRA DO FAQUIR 7


No domingo passado participei de uma afinada conversa com Zeca Baleiro, no último dia da Bienal de Literatura de Campos dos Goytacazes. (Sim, alentadoramente em Campos não repercutem mais apenas deploráveis problemas políticos.) Com curadoria arquitetada pela professora poeta autora de livros infantis e divulgadora incansável da literatura Suzana Vargas, no evento feito em homenagem a Ferreira Gullar e Rachel de Queiroz, estiveram entre outros nomes importantes lá na Praça São Salvador: Sérgio Sant’Anna, Ondjaki, José Eduardo Agualusa, João Paulo Cuenca, Ruy Castro, José Castello, Heloísa Seixas, Lêdo Ivo, Luís Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Nelson Motta, Mia Couto, Nei Lopes, Ana Paula Maia, Fabrício Carpinejar, Michel Melamed e o próprio Ferreira Gullar, nosso maior poeta vivo. Nada mau, hein?

Mediado pelo jornalista e compositor (vencedor de vários festivais de música da região) Aloysio Balbi, o tema que nós tínhamos a destrinchar para uma plateia essencialmente jovem, Zeca Baleiro e eu, era exatamente o título desta crônica: Quando a letra vira música. Como Zeca ficou preso no trânsito, tive de encarar a arena jovem lotada e começar sozinho. Poderia dizer, para ir direto ao ponto, que isso acontece, a letra virar música, no momento em que há o encaixe adequado entre letra e música; isto é, entre letra de um lado e melodia e harmonia do outro. Quando a composição fecha em uma coisa só e não há mais lados. Simples assim. Mas achei melhor começar lendo o poema que deu origem à minha canção Por você (em parceria com Frejat e Maurício Barros). Foi uma decisão acertada.

Curiosamente o tema da letra de música tem sido privilegiado nos últimos dias. Estabeleceu-se uma polêmica em jornal entre dois compositores-ensaístas de gerações diferentes que admiro, Francisco Bosco e José Miguel Wisnick, polêmica (ou diálogo) sobre o tema, especificamente sobre a letra de música que é feita antes que haja uma música propriamente. Defendeu Francisco que esta pertenceria a um gênero absurdo. Wisnick não entendeu a especificidade e falou que a letra em geral não seria um gênero absurdo. Francisco se explicou mais uma vez e Wisnick acrescentou, com carinho e respeito pelo interlocutor, que o outro falava de um gênero ao qual se dedicava, mas sem declarar explicitamente sua adesão.

Acho saudável e revelador que o debate se dê sobre o gênero que é meu também, ainda mais num nível tão elevado de argumentação, mas entendo que eles discutiram quase a espuma da onda que quebra na praia. O que importa, em minha opinião (e acredito que para o público em geral), não é saber se a letra foi feita antes, depois ou durante. Importa realmente é que a música seja boa, independentemente do processo de criação. Que a melodia e a letra estejam unidas de forma harmônica e bela, isto sim é digno de relevância para gregos antigos e baianos modernos.

Também nos últimos dias iniciou-se um curso de Poesia e Letra de Música, aqui no Rio, ministrado por Antonio Cícero, filósofo, poeta e letrista de primeira ordem. Fiquei dividido entre aproveitar o tempo necessário para outras tarefas literárias e me dar o prazer renovador de ouvir o mestre, mas resolvi fazer. No ano passado eu mesmo tive a oportunidade de dar um curso unindo os dois gêneros e foi uma experiência muito interessante. Agora, com apenas uma aula assistida, já tenho a certeza de que fiz a coisa certa. Antonio Cícero, além de excelente poeta, é culto, extremamente inteligente e o melhor: fala de forma simples e bem-humorada.

Voltando a Campos e à minha troca de impressões com o inventivo Zeca Baleiro, que começou na Bienal e se estendeu a uma mesa de bar depois do evento. Ainda que ele, um artista múltiplo, autor, dentre outras criações, de um disco extraordinário em que musicou poemas de Hilda Hilst e que agora está lançando o livro Bala na agulha (reflexões de boteco, pasteis de memória e outras frituras), já conhecesse um pouco do meu trabalho e tenhamos alguns amigos músicos em comum, foi um papo que fluiu fácil desde o abraço inicial. Foi bem recebido pela curiosa plateia e nos deixou à vontade para falar sobre inspiração, o trabalho quase invisível do letrista que é só letrista, o momento de transição do mercado, a falta de discurso das novas bandas de sucesso em oposição à nossa inesgotável fonte de talentos musicais, o descartável e o que não morre nunca. E, claro, futebol, paixão dos dois – aí já com um copo de chope na frente e o relaxamento de quem já tinha cumprido o seu dever. Por um instante me senti mesmo como que seu parceiro de fé na união indissociável de vida e arte, letra e música. Valeu, Zeca: saúde e até a próxima.

3 comentários:

  1. Nossa, como queria mto ter assistido esse encontro histórico.
    Seria ótimo ouvi-lo falar mais um vez aqui em Brasília

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  2. Foi realmente muito bacana, Heloísa. Adoraria voltar a Brasília numa oportunidade dessas. Quando rola outra Bienal? Bjs.

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  3. Muito bacana esse momento, cumpadi...
    Saudades de você, meu afilhado e das nossas conversas...
    Bj,
    R.

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